Da moderação
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Confesso que roubei o título desta crônica de um ensaio de Michel de
Montaigne (1533-1592). Talvez seja porque eu aprecie, como Montaigne,
“as naturezas equilibradas e moderadas. A falta de moderação, mesmo para
com o bem, se não me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para
batizá-la. (…). E não me agrada nem aconselhar nem seguir uma virtude
tão feroz e tão dispendiosa” (“Da moderação”, em “Os ensaios”, livro I,
editora Martins Fontes, 2002).
Mas o fato é que ando muito
preocupado com estes nossos tempos em que radicais e amalucados, de
dentro, pululam na nossa Justiça, na nossa política e na condução geral
do nosso país. E, de fora, muito mais do que outros tantos, desocupados
ou frustrados, sobretudo nas tais redes sociais, batem palmas para esses
malucos.
De quebra, caíram novamente em minhas mãos dois livros
marcantes, lidos outrora, que, em passagens que nunca esqueci, fazem,
cada qual a seu modo, apelos à moderação. Falo de “O Século dos
Intelectuais” (Bertrand Brasil, 2000), de Michael Winock (Bertrand
Brasil, 2000) e de “A era da incerteza” (Livraria Pioneira Editora,
1980), de John Kenneth Galbraith (1908-2006). Talvez, se eu fosse um
astrólogo-filósofo, acreditasse ter sido isso uma conspiração dos
astros.
Em “O Século dos Intelectuais” (“Le siècle des
inttelectuels”), Winock faz uma homenagem à moderação na pessoa do
filósofo, sociólogo e cientista político Raymond Aron (1905-1983),
sobretudo levando em conta o livro “O grande cisma” (“Le Grand Schisme”,
editora Gallimard, 1948), ensaio de síntese sobre a situação política
mundial e francesa de então: “a clareza da exposição [em ‘Le Grand
Schisme’], sustentada por fórmulas que passaram à posteridade, e
sobretudo a determinação do autor ainda impressionam o leitor atual.
Enquanto a luta ideológica favorece, de ambos os lados, uma literatura
muitas vezes delirante, o autor surpreende também por um certo tom que
não é exatamente o da época – o da moderação. Aron, porém, dá provas de
que um espírito de moderação não significa um caráter fraco, que ele
surge menos de um temperamento, que de uma experiência e de uma cultura
adquiridas, de uma paixão dominada. Le Grand Schisme denota uma
combinação entre comedimento nas palavras e firmeza na atitude”.
Autor de clássicos como “L’Opium des intellectuels” (1955), “Démocratie
et totalitarisme” (1965) e “Les étapes de la pensée sociologique”
(1967), Raymond Aron foi, no seu tempo, a voz da moderação na política.
Teve muitos discípulos tanto na esquerda como na direita, muito embora
se considerasse pessoalmente, e um tanto quanto estranhamente (bastando
aqui lembrar de “L’Opium des intellectuels”), mais um agitador de
esquerda do que um de direita (talvez em virtude da sua aproximação
pessoal com muitos intelectuais “à gauche”). Outro dia, andei
conversando com meu pai sobre as “Mémoires” (1983) de Aron. E lamentei,
mas sem botar culpa nas estrelas, a ausência de intelectuais como Aron
na arena política brasileira (e, quicá, na mundial).
Já em “A era
da incerteza” (“The Age of Uncertainty”) – livro que é resultado, no
papel, de uma série de TV produzida pela BBC, apresentada pelo próprio
Galbraith –, o autor nos conta uma parte da história da famosa “crise
dos mísseis cubanos”, passada entre os dias 16 e 28 de outubro de 1962.
Por essa época, “generais [e outros afoitos de ocasião] faziam discursos
ameaçando os comunistas com extermínio atômico”, lembra Galbraith.
Conclamavam os americanos a embarcar na empreitada. E mostravam – pelo
menos eles pensavam que sim – uma suposta coragem pessoal. Durante
alguns dias angustiantes, a perspectiva de uma guerra nuclear –
reciprocamente suicida, para dizer o mínimo – tornou-se clara e
iminente.
Entretanto, como especialmente ressalta John Kenneth
Galbraith, “algo mais evidenciou-se nessa crise, pelo menos para o
Presidente dos Estados Unidos. Foi a de que homens de pouca coragem
moral, quando se veem forçados a uma decisão, ficam com medo de resistir
ao ponto de vista consagrado, não importando quão catastrófico ele
possa ser. Assim, paradoxalmente, por covardia, com receio de divergir
ou parecer fracos, eles concitam a tomar-se o curso mais perigoso.
Durante a crise dos mísseis, foram esses homens que advogaram um ataque
às bases de lançamento dos mesmos, no que chamaram de golpe cirúrgico.
Ninguém poderia dizer que a eles faltasse coragem ou determinação,
acusação essa que mais eles temiam. Os homens de coragem não
comprometida – Adlai Stevenson, George Ball, Robert Kennedy –
recomendaram comedimento, prudência. Ao voltar da Índia, alguns dias
após o fim da crise, fui uma noite ao teatro com o Presidente e a Srª
Kennedy. Durante o intervalo, saímos pelo pano de boca e nos sentamos na
escada, junto ao palco. Isso salvou o Presidente dos
apertadores-de-mãos e dos caçadores de autógrafos. ‘Não votei no senhor,
Presidente, mas sem dúvida sou seu admirador’. Ele contou-me, com
emoção, dos conselhos imprudentes que havia recebido no transcorrer da
crise cubana. Os piores, asseverou, vieram daqueles que tinham medo de
ser sensatos”.
Fico pensando como isso tudo parece com o Brasil de hoje, onde, para muitos, falta a coragem para ser (apenas) moderado.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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