13/05/2019


Da moderação
Confesso que roubei o título desta crônica de um ensaio de Michel de Montaigne (1533-1592). Talvez seja porque eu aprecie, como Montaigne, “as naturezas equilibradas e moderadas. A falta de moderação, mesmo para com o bem, se não me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para batizá-la. (…). E não me agrada nem aconselhar nem seguir uma virtude tão feroz e tão dispendiosa” (“Da moderação”, em “Os ensaios”, livro I, editora Martins Fontes, 2002).
Mas o fato é que ando muito preocupado com estes nossos tempos em que radicais e amalucados, de dentro, pululam na nossa Justiça, na nossa política e na condução geral do nosso país. E, de fora, muito mais do que outros tantos, desocupados ou frustrados, sobretudo nas tais redes sociais, batem palmas para esses malucos.
De quebra, caíram novamente em minhas mãos dois livros marcantes, lidos outrora, que, em passagens que nunca esqueci, fazem, cada qual a seu modo, apelos à moderação. Falo de “O Século dos Intelectuais” (Bertrand Brasil, 2000), de Michael Winock (Bertrand Brasil, 2000) e de “A era da incerteza” (Livraria Pioneira Editora, 1980), de John Kenneth Galbraith (1908-2006). Talvez, se eu fosse um astrólogo-filósofo, acreditasse ter sido isso uma conspiração dos astros.
Em “O Século dos Intelectuais” (“Le siècle des inttelectuels”), Winock faz uma homenagem à moderação na pessoa do filósofo, sociólogo e cientista político Raymond Aron (1905-1983), sobretudo levando em conta o livro “O grande cisma” (“Le Grand Schisme”, editora Gallimard, 1948), ensaio de síntese sobre a situação política mundial e francesa de então: “a clareza da exposição [em ‘Le Grand Schisme’], sustentada por fórmulas que passaram à posteridade, e sobretudo a determinação do autor ainda impressionam o leitor atual. Enquanto a luta ideológica favorece, de ambos os lados, uma literatura muitas vezes delirante, o autor surpreende também por um certo tom que não é exatamente o da época – o da moderação. Aron, porém, dá provas de que um espírito de moderação não significa um caráter fraco, que ele surge menos de um temperamento, que de uma experiência e de uma cultura adquiridas, de uma paixão dominada. Le Grand Schisme denota uma combinação entre comedimento nas palavras e firmeza na atitude”.
Autor de clássicos como “L’Opium des intellectuels” (1955), “Démocratie et totalitarisme” (1965) e “Les étapes de la pensée sociologique” (1967), Raymond Aron foi, no seu tempo, a voz da moderação na política. Teve muitos discípulos tanto na esquerda como na direita, muito embora se considerasse pessoalmente, e um tanto quanto estranhamente (bastando aqui lembrar de “L’Opium des intellectuels”), mais um agitador de esquerda do que um de direita (talvez em virtude da sua aproximação pessoal com muitos intelectuais “à gauche”). Outro dia, andei conversando com meu pai sobre as “Mémoires” (1983) de Aron. E lamentei, mas sem botar culpa nas estrelas, a ausência de intelectuais como Aron na arena política brasileira (e, quicá, na mundial).
Já em “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”) – livro que é resultado, no papel, de uma série de TV produzida pela BBC, apresentada pelo próprio Galbraith –, o autor nos conta uma parte da história da famosa “crise dos mísseis cubanos”, passada entre os dias 16 e 28 de outubro de 1962. Por essa época, “generais [e outros afoitos de ocasião] faziam discursos ameaçando os comunistas com extermínio atômico”, lembra Galbraith. Conclamavam os americanos a embarcar na empreitada. E mostravam – pelo menos eles pensavam que sim – uma suposta coragem pessoal. Durante alguns dias angustiantes, a perspectiva de uma guerra nuclear – reciprocamente suicida, para dizer o mínimo – tornou-se clara e iminente.
Entretanto, como especialmente ressalta John Kenneth Galbraith, “algo mais evidenciou-se nessa crise, pelo menos para o Presidente dos Estados Unidos. Foi a de que homens de pouca coragem moral, quando se veem forçados a uma decisão, ficam com medo de resistir ao ponto de vista consagrado, não importando quão catastrófico ele possa ser. Assim, paradoxalmente, por covardia, com receio de divergir ou parecer fracos, eles concitam a tomar-se o curso mais perigoso. Durante a crise dos mísseis, foram esses homens que advogaram um ataque às bases de lançamento dos mesmos, no que chamaram de golpe cirúrgico. Ninguém poderia dizer que a eles faltasse coragem ou determinação, acusação essa que mais eles temiam. Os homens de coragem não comprometida – Adlai Stevenson, George Ball, Robert Kennedy – recomendaram comedimento, prudência. Ao voltar da Índia, alguns dias após o fim da crise, fui uma noite ao teatro com o Presidente e a Srª Kennedy. Durante o intervalo, saímos pelo pano de boca e nos sentamos na escada, junto ao palco. Isso salvou o Presidente dos apertadores-de-mãos e dos caçadores de autógrafos. ‘Não votei no senhor, Presidente, mas sem dúvida sou seu admirador’. Ele contou-me, com emoção, dos conselhos imprudentes que havia recebido no transcorrer da crise cubana. Os piores, asseverou, vieram daqueles que tinham medo de ser sensatos”.
Fico pensando como isso tudo parece com o Brasil de hoje, onde, para muitos, falta a coragem para ser (apenas) moderado.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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