Estórias venenosas
Em “Imitando a arte”, nosso artigo da semana passada, tratei do
curioso e ao mesmo tempo trágico cometimento de crimes verdadeiros
alegadamente sob inspiração dos romances da minha amiga Agatha Christie
(1890-1976). Infelizmente, aquilo que nos faz tão bem – a companhia e a
genialidade da Rainha do Crime –, também pode ser usado para o mal.
Como visto, a tônica nesses crimes – supostamente praticados sob
inspiração da obra de Christie – é o uso de venenos. E, como também
dito, um romance em especial, “The Pale Horse” (“O cavalo amarelo”,
1961), parece haver instigado a imaginação desses assassinos reais. Em
“The Pale Horse”, assassinos profissionais, forjando pretensas
cerimônias de magia negra, fazem uso de uma droga incolor e inodora,
difícil de detectar, cujos sintomas decorrentes do seu uso são
facilmente confundidos com os de outras enfermidades: o tálio.
Mas o uso de veneno na ficção de Agatha Christie não se restringe a
“The Pale Horse”. Contam-se mais de 80 personagens que morreram
envenenadas em seus livros. E suas descrições sobre o uso e os efeitos
de toxinas, cujo conhecimento foi adquirido durante a 1ª Guerra Mundial,
são universalmente consideradas como acuradas e engenhosas, emprestando
ainda mais qualidade aos seus surpreendentes enredos. Eu mesmo posso
recomendar uma meia dúzia dessas “estórias venenosas”. Diversão certa.
Começo logo pelo excelente “The Mysterious Affair at Styles” (“O
misterioso caso de Styles”, 1920), o primeiro romance da Rainha do
Crime. É aqui que nos são apresentados o inconfundível Hercule Poirot (o
detetive belga imaginado por Christie), o seu companheiro de aventuras
Capitão Hastings (que narra a estória) e, ainda, o laborioso Inspetor
Japp, da Scotland Yard. A coisa se passa numa isolada casa de campo, a
mansão Styles. A casa está cheia de hóspedes. A rica proprietária da
casa, no que parece ser um ataque cardíaco misturado com convulsões,
morre. Todos na casa tinham algum interesse no passamento da falecida.
Surge a suspeita de envenenamento. A droga usada é a fatal estricnina.
Outro título que não fica atrás em qualidade – e no qual também se
faz uso homicida de uma droga – é “Lord Edgware Dies” (“A morte de Lorde
Edgware” ou “Treze à mesa”, 1933). Aliás, não é raro ser este
considerado um dos melhores romances – e quicá o melhor – escritos pela
minha amiga Agatha Christie. Também protagonizado pelo pitoresco Hercule
Poirot, ao lado de seu escudeiro Capitão Hastings e do Inspetor Japp, a
trama inicia-se com o assassinato, com uma facada [o que me evoca os
tempos bisonhos que vivemos], do Lorde Edgware. A esposa, Jane
Wilkinson, que o havia ameaçado de morte ante a recusa de um divórcio, é
a primeira suspeita. Mas ela tem um álibi numa festa com treze
convidados. E, para encobrir o primeiro crime, outro é praticado. Desta
feita, usa-se um antigo e conhecido barbitúrico, o veronal.
Em “Sparkling Cyanide” (“Um brinde de cianureto”, 1944) o título já
diz tudo. Na sua festa de aniversário, a belíssima e infiel Rosemary
Barton aparentemente comete suicídio. Mas a coisa não é tão simples
assim. É o que dizem as cartas anônimas recebidas pelo marido. Uma
reconstituição da morte é empreendida, pois todos os convidados têm
motivos e coisas a esconder. O Coronel Race, outro dos personagens da
Rainha do Crime, é o convidado para desvendar essa trama cheia de
cianureto.
Cicuta foi o veneno tomado por Sócrates (469-399 a.C.) para se
autoexecutar na raivosa Grécia de então. Essa mesma droga causa a morte
do pintor Amyas Crale em “Five Little Pigs” (Os cinco porquinhos”,
1942). Caroline, sua esposa, foi condenada pelo crime. Morreu na prisão.
Criança à época do trágico evento, a filha Carla Lemarchant, dezesseis
anos depois, prestes a se casar, decide provar a inocência da mãe. A
pedido da jovem, entra em cena o inolvidável Hercule Poirot, que sai à
caça dos cinco porquinhos (digo, suspeitos) da trama. Quase à
unanimidade, “Five Little Pigs” é considerado o melhor romance de
“murder in retrospect” (aliás, título desta estória, quando de sua
primeira publicação) da Rainha do Crime.
“Dumb Witness” (“Poirot perde uma cliente”, 1937) é mais um caso
para a dupla Hercule Poirot e Capitão Hastings. A senhorita Emily
Arundell sofre um estranho e grave acidente em casa. Desconfiada dos
parentes, ávidos por sua herança, ela escreve ao amigo Poirot. Mas
quando a carta chega ao detetive, ela já está morta. Poirot e Hastings
vão a Littlegreen House para esclarecer o acontecido. Do crime, a
principal testemunha é Bob, o cãozinho da finada. Assim como o meu
Capote (esse é o nome do meu cão), ele não pode dizer nada. De toda
sorte, esse melhor amigo do homem tem um papel destacado nessa trama
cuja toxina assassina é o fósforo.
Por fim, nesta minha lista, tem um romance em que é utilizado aquele
que talvez seja o mais famoso dos venenos: o arsênico. Em “After the
Funeral” (“Depois do funeral”, 1953), os parentes acham-se presentes às
exéquias do rico industrial Richard Abernethie. A irmã Cora, para o
desconforto dos demais, insinua que o de cujus foi assassinado. No dia
seguinte, com machadadas, a impertinente Cora é assassinada. Para
desvendar todo o sucedido: chama o Poirot.
Bom, eu podia citar inúmeros outros títulos. De toda sorte, quando
eu falo que recomendo esses romances aí, quero dizer a leitura, tão
somente. Nada dessas sandices de ficar bulindo com venenos. Assim como
Agatha Christie, que fazia apenas ficção, eu tento somente misturar
direito com literatura. Embora com bem menos estilo que minha amiga.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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