22/02/2017

   
Marcelo Alves

 

Sobre “O julgamento de Nuremberg” (IV)

Finalizando nossa série de artigos sobre “O julgamento de Nuremberg” (“Judgment at Nuremberg”, 1961), hoje conversaremos sobre temas essencialmente jurídicos que estão presentes nesse famoso filme de tribunal. Como não são poucos, vou selecionar os dois que reputo os mais importantes. 

O primeiro deles diz respeito à natureza do Tribunal de Nuremberg, que é, na sua feição final, já composto apenas de juízes americanos, retratado no filme de 1961. Não resta dúvida de que esse Tribunal, em princípio composto por representantes das quatro grandes potências aliadas (Estados Unidos da América, Reino Unido, França e União Soviética), em seguida apenas pelos americanos, criado “ad doc”, após o fato (a ser julgado) e em caráter temporário, era um tribunal de exceção, algo que, hoje, não condiz com o Estado Democrático de Direito, estando expressamente vedado, por exemplo, na nossa Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”). 

Mas a pergunta é: à época, existiria uma melhor forma de julgar e punir os crimes cometidos pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial? 

Levando em conta o contexto histórico, penso que não. Como já disse aqui, historicamente falando, a ideia por detrás dos “julgamentos de Nuremberg” era bastante louvável em termos civilizatórios. Com esses julgamentos, diferentemente dos tempos de César (100a.C.-44a.C.) ou mesmo de Napoleão (1769-1821), os nazistas seriam severamente punidos, mas com base em um processo judicial e de uma maneira digna, que serviria de exemplo para a posteridade. 

Em segundo lugar, já falando especificamente do “julgamento dos juízes” (que foi apenas um dos vários “julgamentos de Nuremberg”), retratado em “O julgamento de Nuremberg”, o filme tem com pano de fundo a velha dicotomia entre direito natural e direito positivo e, mais concretamente, discute a responsabilidade de promotores e de juízes na aplicação de um direito positivo, no caso a legislação nazista, que impunha a pureza racial, a esterilização de pessoas especiais, entre outras barbaridades, levando com a isso à prisão e mesmo à morte muitos inocentes, em ofensa a qualquer conceito mínimo de direito natural. 

Como bem explica Nicole Rafter, em artigo intitulado “American Criminal Trial Films: An Overview of Their Development, 1930-2000” (e que faz parte do livro “Law and Film”, editado por Stefan Machura e Peter Robson, Blackwell Publishers, 2001): “Levando à tela grande o julgamento, pós 2ª Guerra Mundial, de homens que serviram como juízes durante o regime nazista, o filme concentra-se, essencialmente, naquilo que um dos personagens chama de 'crimes cometidos em nome do direito'. A discussão fundamental é se os juízes devem obedecer ao direito positivo (no sentido de direito feito pelos homens) ou ao direito natural. É certo, como defende um dos advogados de defesa, que 'um juiz não faz as leis; ele aplica as leis do seu país', ou devem os juízes sempre ter em conta um tipo de lei superior, a Justiça, em si?”. 

Interessantemente, “O julgamento de Nuremberg” responde a esse questionamento principalmente por intermédio de um outro magistrado, posto assim no papel de herói do filme, o Presidente da Corte de Nuremberg (no caso do “julgamento dos juízes”), o juiz Dan Haywood (personagem de Spencer Tracy), caraterizado como um homem modesto, tolerante e justo, que quer primeiramente entender como os mais sábios magistrados da Alemanha puderam participar dos horrores do regime nazista e, se for caso, punir adequadamente esses “crimes judiciais” praticados “em nome da lei”. Como anotam Steve Greenfield, Guy Osborn e Peter Robson (em “Film and the Law: the Cinema of Justice”, Hart Publishing, 2010): “As dificuldades de julgar e impor uma pena correta aos réus em 'O julgamento de Nuremberg' ('Judgment at Nuremberg') nos é mostrada pelos olhos do juiz Haywood (papel de Spencer Tracy), um homem com os pés no chão e tolerante, que tem de lidar com dilemas do seu entorno e de sua época. Isso gera uma enorme simpatia para com ele, que ao contrário dos juízes nazistas, não se furta de lidar com os problemas que o ato de julgar justamente nos impõe”. 

A resposta nos é dada precisamente pelo anti-herói do filme, Ernst Janning (interpretado por Burt Lancaster), aquele jurista que, segundo é dito no filme, havia “dedicado sua vida à Justiça – ao conceito de Justiça”. Embora num primeiro momento não reconheça a autoridade do tribunal para julgá-lo, Ernst Janning acaba aceitando sua responsabilidade pelos graves erros do regime nazista, reconhecendo que tanto ele como os corréus sabiam que as pessoas que eles sentenciavam eram enviadas a campos de concentração. Na verdade, como também sugere Bruno Dayez (em “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), a tática da defesa cai por terra quando o próprio Ernst Janning, tomando o lugar do seu advogado (papel de Maximilian Schell, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator), vem a reconhecer a sua responsabilidade no caso Feldenstein, que já estaria decidido antes mesmo da abertura dos debates. “Aquilo não foi um processo”, dirá Ernst Janning, “foi um rito de sacrifício”. Assim, ele mesmo se condena por haver optado pela “lei dos homens” em lugar do direito natural. 

Baseado nessa crença de que uma lei moral transcende o direito feito pelos homens, devendo ser seguida por todos nós, o tribunal condena os réus. Apesar da pressão internacional por uma sentença mais leve – a guerra já havia passado e era necessário reconstruir a Alemanha –, a pena é de prisão perpétua. No final do filme, num encontro entre herói e anti-herói, afirma ainda a personagem de Spencer Tracy: “sua culpa [e a dos juízes nazistas como um todo] teve início na primeira vez que você condenou conscientemente um inocente”. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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