Sobre “O julgamento de Nuremberg” (IV)
Finalizando nossa série de artigos sobre “O julgamento de Nuremberg”
(“Judgment at Nuremberg”, 1961), hoje conversaremos sobre temas
essencialmente jurídicos que estão presentes nesse famoso filme de
tribunal. Como não são poucos, vou selecionar os dois que reputo os mais
importantes.
O primeiro deles diz respeito à natureza do Tribunal de Nuremberg,
que é, na sua feição final, já composto apenas de juízes americanos,
retratado no filme de 1961. Não resta dúvida de que esse Tribunal, em
princípio composto por representantes das quatro grandes potências
aliadas (Estados Unidos da América, Reino Unido, França e União
Soviética), em seguida apenas pelos americanos, criado “ad doc”, após o
fato (a ser julgado) e em caráter temporário, era um tribunal de
exceção, algo que, hoje, não condiz com o Estado Democrático de Direito,
estando expressamente vedado, por exemplo, na nossa Constituição
Federal, no seu art. 5º, inciso XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de
exceção”).
Mas a pergunta é: à época, existiria uma melhor forma de julgar e
punir os crimes cometidos pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial?
Levando em conta o contexto histórico, penso que não. Como já disse
aqui, historicamente falando, a ideia por detrás dos “julgamentos de
Nuremberg” era bastante louvável em termos civilizatórios. Com esses
julgamentos, diferentemente dos tempos de César (100a.C.-44a.C.) ou
mesmo de Napoleão (1769-1821), os nazistas seriam severamente punidos,
mas com base em um processo judicial e de uma maneira digna, que
serviria de exemplo para a posteridade.
Em segundo lugar, já falando especificamente do “julgamento dos
juízes” (que foi apenas um dos vários “julgamentos de Nuremberg”),
retratado em “O julgamento de Nuremberg”, o filme tem com pano de fundo a
velha dicotomia entre direito natural e direito positivo e, mais
concretamente, discute a responsabilidade de promotores e de juízes na
aplicação de um direito positivo, no caso a legislação nazista, que
impunha a pureza racial, a esterilização de pessoas especiais, entre
outras barbaridades, levando com a isso à prisão e mesmo à morte muitos
inocentes, em ofensa a qualquer conceito mínimo de direito natural.
Como bem explica Nicole Rafter, em artigo intitulado “American
Criminal Trial Films: An Overview of Their Development, 1930-2000” (e
que faz parte do livro “Law and Film”, editado por Stefan Machura e
Peter Robson, Blackwell Publishers, 2001): “Levando à tela grande o
julgamento, pós 2ª Guerra Mundial, de homens que serviram como juízes
durante o regime nazista, o filme concentra-se, essencialmente, naquilo
que um dos personagens chama de 'crimes cometidos em nome do direito'. A
discussão fundamental é se os juízes devem obedecer ao direito positivo
(no sentido de direito feito pelos homens) ou ao direito natural. É
certo, como defende um dos advogados de defesa, que 'um juiz não faz as
leis; ele aplica as leis do seu país', ou devem os juízes sempre ter em
conta um tipo de lei superior, a Justiça, em si?”.
Interessantemente, “O julgamento de Nuremberg” responde a esse
questionamento principalmente por intermédio de um outro magistrado,
posto assim no papel de herói do filme, o Presidente da Corte de
Nuremberg (no caso do “julgamento dos juízes”), o juiz Dan Haywood
(personagem de Spencer Tracy), caraterizado como um homem modesto,
tolerante e justo, que quer primeiramente entender como os mais sábios
magistrados da Alemanha puderam participar dos horrores do regime
nazista e, se for caso, punir adequadamente esses “crimes judiciais”
praticados “em nome da lei”. Como anotam Steve Greenfield, Guy Osborn e
Peter Robson (em “Film and the Law: the Cinema of Justice”, Hart
Publishing, 2010): “As dificuldades de julgar e impor uma pena correta
aos réus em 'O julgamento de Nuremberg' ('Judgment at Nuremberg') nos é
mostrada pelos olhos do juiz Haywood (papel de Spencer Tracy), um homem
com os pés no chão e tolerante, que tem de lidar com dilemas do seu
entorno e de sua época. Isso gera uma enorme simpatia para com ele, que
ao contrário dos juízes nazistas, não se furta de lidar com os problemas
que o ato de julgar justamente nos impõe”.
A resposta nos é dada precisamente pelo anti-herói do filme, Ernst
Janning (interpretado por Burt Lancaster), aquele jurista que, segundo é
dito no filme, havia “dedicado sua vida à Justiça – ao conceito de
Justiça”. Embora num primeiro momento não reconheça a autoridade do
tribunal para julgá-lo, Ernst Janning acaba aceitando sua
responsabilidade pelos graves erros do regime nazista, reconhecendo que
tanto ele como os corréus sabiam que as pessoas que eles sentenciavam
eram enviadas a campos de concentração. Na verdade, como também sugere
Bruno Dayez (em “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), a
tática da defesa cai por terra quando o próprio Ernst Janning, tomando o
lugar do seu advogado (papel de Maximilian Schell, que lhe rendeu o
Oscar de melhor ator), vem a reconhecer a sua responsabilidade no caso
Feldenstein, que já estaria decidido antes mesmo da abertura dos
debates. “Aquilo não foi um processo”, dirá Ernst Janning, “foi um rito
de sacrifício”. Assim, ele mesmo se condena por haver optado pela “lei
dos homens” em lugar do direito natural.
Baseado nessa crença de que uma lei moral transcende o direito feito
pelos homens, devendo ser seguida por todos nós, o tribunal condena os
réus. Apesar da pressão internacional por uma sentença mais leve – a
guerra já havia passado e era necessário reconstruir a Alemanha –, a
pena é de prisão perpétua. No final do filme, num encontro entre herói e
anti-herói, afirma ainda a personagem de Spencer Tracy: “sua culpa [e a
dos juízes nazistas como um todo] teve início na primeira vez que você
condenou conscientemente um inocente”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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