Como
prometido na semana passada, chegou a hora de conversarmos sobre a
objeção à doutrina do “stare decisis” fundada na ofensa ao princípio da
persuasão racional do juiz.
Com
efeito, a objeção provavelmente mais comum feita à adoção da doutrina
do precedente obrigatório - no Brasil, mais especificamente, isso foi
frequente quando da adoção da súmula vinculante das decisões do Supremo
Tribunal Federal - é que isso transforma a decisão do juiz numa simples
mecânica de aplicar o precedente já existente ao caso julgamento. O juiz
perderia o seu livre convencimento de julgar e estaria completamente
impedido de se afastar de um precedente, por mais incorreto que o
considerasse.
Antes
de mais nada, esse tipo de visão, refratária à teoria do “stare
decisis”, mostra, claramente, a ignorância dos seus defensores quanto ao
assunto. Na verdade, apesar de a doutrina do “binding precedent” (ou
“stare decisis”) significar, em resumo, que juízes e cortes inferiores
devem seguir os precedentes das cortes superiores (e, muitas vezes, seus
próprios precedentes), na prática, as decisões judiciais, em sistemas
informados pela doutrina do “binding precedent” - a Inglaterra e os
Estados Unidos são exemplos disso - não são nem neutras nem mecânicas. A
regra é seguir-se o precedente (disso não se duvida e aí está a
utilidade da doutrina), mas, muitas vezes, por diversos motivos
pertinentes, o juiz ou a corte deixa de aplicar um precedente,
aparentemente obrigatório.
Na
Inglaterra, por exemplo, em teoria, somente a “Supreme Court of the
United Kingdom”, que pode revogar suas próprias decisões, pode
afastar-se de um precedente. Todas as outras cortes do Reino devem
seguir o precedente, que se aplica num caso particular, por mais que
desgostem dele. Todavia, como lembram Catherine Elliot e Frances Quinn
(em “English Legal System”, livro publicado pela Longman/Pearson
Educated), “há certas maneiras pelas quais os juízes podem evitar
precedentes incômodos que, à primeira vista, podem parecer
obrigatórios”. Essas maneiras de evitar os precedentes são em
considerável número. Eis algumas delas, referidas pelos autores acima
citados, que podem, no grau devido e com as devidas adaptações, ser
aplicadas ao Direito brasileiro em caso de estar-se diante de um
precedente vinculante: (i) distinguindo-se o precedente inconveniente no
que toca aos seus fatos (e essa é a forma mais simples de se evitar o
precedente indesejado); (ii) distinguindo-se a questão de direito; (iii)
dando-se ao precedente uma “ratio decidendi” muito limitada (e a única
parte de uma decisão que é obrigatória é a sua “ratio”); (iv)
afirmando-se que o precedente é incompatível com uma decisão posterior
de uma corte superior e, por inferência, tenha sido revogado; (v)
afirmando-se que o precedente está desatualizado em relação ao direito
legislado; e (vi) constatando-se que a decisão anterior foi feita “per
incuriam”, ou seja, que a corte que decidiu o precedente deixou de
considerar alguma lei ou precedente à época relevantes.
Em
segundo lugar, essa visão refratária é de uma falta de pragmatismo
inconcebível, pois, em prol de um suposto livre convencimento do juiz,
joga fora todas as vantagens da doutrina do “binding precedent”.
Cuida-se de uma visão romântica, irreal e, sobretudo, contrária ao
interesse público. De fato, é de se indagar: há, por exemplo, algum
interesse público em fomentar a rebeldia em processos de massa com
questões puramente de direito? Claro que não. A quem serviria essa
mitológica liberdade de convencimento? A pouquíssimos, a algumas
vaidades no Judiciário e a alguns advogados (falamos dos maus
advogados).
Em
terceiro lugar, o princípio da persuasão racional do juiz ou da
liberdade na interpretação da lei, por mais importante que seja, há de
ser conciliado com o princípio constitucional da igualdade de todos
perante a lei. Sempre que aos casos iguais sejam aplicadas decisões
judiciais divergentes, sendo isso fruto de um apego quase religioso à
liberdade de convicção do juiz, o princípio constitucional da igualdade
de todos perante a lei, no seu conteúdo, é aniquilado. Em outras
palavras, a expressão constitucional contida no “caput” do art. 5º da
Constituição de 1988 restará como uma fórmula vã se não conciliarmos os
dois princípios, e para haver conciliação pressupõe-se, necessariamente,
não aniquilar um dos princípios.
Por
fim, é importante ficar claro que a adoção de um bom modelo de
precedentes vinculantes, como se busca fazer no Brasil, não visa impor
aos juízes e aos tribunais amarras que lhes tolham a possibilidade de
enxergar o Direito de uma maneira nova, toda vez que o entendimento
comumente adotado já se mostre superado pelos inevitáveis câmbios
sociais. O que se visa é uma fórmula que impeça, na medida do possível,
que a sorte dos litigantes fique ao sabor das frequentes mudanças das
composições dos tribunais e das mudanças de entendimento disso
decorrente (o que é muito comum hoje no Brasil, ninguém é louco ao ponto
de negar), que fique ao sabor da simples distribuição do feito a esse
ou aquele órgão julgador ou, o que é ainda pior, que fique ao sabor da
vaidade ou da teimosia infrutífera do juiz de um caso.
Bom,
posto tudo isso (neste e nos dois artigos anteriores), o que vocês
acham: no geral, as vantagens da doutrina “stare decisis” superam
satisfatoriamente as desvantagens? E no caso específico do Brasil?
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