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21/08/2015


   
Marcelo Alves

Precedentes: o outro lado (III)

Como prometido na semana passada, chegou a hora de conversarmos sobre a objeção à doutrina do “stare decisis” fundada na ofensa ao princípio da persuasão racional do juiz.

Com efeito, a objeção provavelmente mais comum feita à adoção da doutrina do precedente obrigatório - no Brasil, mais especificamente, isso foi frequente quando da adoção da súmula vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal - é que isso transforma a decisão do juiz numa simples mecânica de aplicar o precedente já existente ao caso julgamento. O juiz perderia o seu livre convencimento de julgar e estaria completamente impedido de se afastar de um precedente, por mais incorreto que o considerasse.

Antes de mais nada, esse tipo de visão, refratária à teoria do “stare decisis”, mostra, claramente, a ignorância dos seus defensores quanto ao assunto. Na verdade, apesar de a doutrina do “binding precedent” (ou “stare decisis”) significar, em resumo, que juízes e cortes inferiores devem seguir os precedentes das cortes superiores (e, muitas vezes, seus próprios precedentes), na prática, as decisões judiciais, em sistemas informados pela doutrina do “binding precedent” - a Inglaterra e os Estados Unidos são exemplos disso - não são nem neutras nem mecânicas. A regra é seguir-se o precedente (disso não se duvida e aí está a utilidade da doutrina), mas, muitas vezes, por diversos motivos pertinentes, o juiz ou a corte deixa de aplicar um precedente, aparentemente obrigatório.

Na Inglaterra, por exemplo, em teoria, somente a “Supreme Court of the United Kingdom”, que pode revogar suas próprias decisões, pode afastar-se de um precedente. Todas as outras cortes do Reino devem seguir o precedente, que se aplica num caso particular, por mais que desgostem dele. Todavia, como lembram Catherine Elliot e Frances Quinn (em “English Legal System”, livro publicado pela Longman/Pearson Educated), “há certas maneiras pelas quais os juízes podem evitar precedentes incômodos que, à primeira vista, podem parecer obrigatórios”. Essas maneiras de evitar os precedentes são em considerável número. Eis algumas delas, referidas pelos autores acima citados, que podem, no grau devido e com as devidas adaptações, ser aplicadas ao Direito brasileiro em caso de estar-se diante de um precedente vinculante: (i) distinguindo-se o precedente inconveniente no que toca aos seus fatos (e essa é a forma mais simples de se evitar o precedente indesejado); (ii) distinguindo-se a questão de direito; (iii) dando-se ao precedente uma “ratio decidendi” muito limitada (e a única parte de uma decisão que é obrigatória é a sua “ratio”); (iv) afirmando-se que o precedente é incompatível com uma decisão posterior de uma corte superior e, por inferência, tenha sido revogado; (v) afirmando-se que o precedente está desatualizado em relação ao direito legislado; e (vi) constatando-se que a decisão anterior foi feita “per incuriam”, ou seja, que a corte que decidiu o precedente deixou de considerar alguma lei ou precedente à época relevantes.

Em segundo lugar, essa visão refratária é de uma falta de pragmatismo inconcebível, pois, em prol de um suposto livre convencimento do juiz, joga fora todas as vantagens da doutrina do “binding precedent”. Cuida-se de uma visão romântica, irreal e, sobretudo, contrária ao interesse público. De fato, é de se indagar: há, por exemplo, algum interesse público em fomentar a rebeldia em processos de massa com questões puramente de direito? Claro que não. A quem serviria essa mitológica liberdade de convencimento? A pouquíssimos, a algumas vaidades no Judiciário e a alguns advogados (falamos dos maus advogados).

Em terceiro lugar, o princípio da persuasão racional do juiz ou da liberdade na interpretação da lei, por mais importante que seja, há de ser conciliado com o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei. Sempre que aos casos iguais sejam aplicadas decisões judiciais divergentes, sendo isso fruto de um apego quase religioso à liberdade de convicção do juiz, o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, no seu conteúdo, é aniquilado. Em outras palavras, a expressão constitucional contida no “caput” do art. 5º da Constituição de 1988 restará como uma fórmula vã se não conciliarmos os dois princípios, e para haver conciliação pressupõe-se, necessariamente, não aniquilar um dos princípios.

Por fim, é importante ficar claro que a adoção de um bom modelo de precedentes vinculantes, como se busca fazer no Brasil, não visa impor aos juízes e aos tribunais amarras que lhes tolham a possibilidade de enxergar o Direito de uma maneira nova, toda vez que o entendimento comumente adotado já se mostre superado pelos inevitáveis câmbios sociais. O que se visa é uma fórmula que impeça, na medida do possível, que a sorte dos litigantes fique ao sabor das frequentes mudanças das composições dos tribunais e das mudanças de entendimento disso decorrente (o que é muito comum hoje no Brasil, ninguém é louco ao ponto de negar), que fique ao sabor da simples distribuição do feito a esse ou aquele órgão julgador ou, o que é ainda pior, que fique ao sabor da vaidade ou da teimosia infrutífera do juiz de um caso.

Bom, posto tudo isso (neste e nos dois artigos anteriores), o que vocês acham: no geral, as vantagens da doutrina “stare decisis” superam satisfatoriamente as desvantagens? E no caso específico do Brasil?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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