Precedentes: o outro lado (II)
Como eu disse aqui na semana passada, na primeira parte da nossa
conversa sobre o tema “Precedentes: o outro lado”, a literatura jurídica
aponta várias desvantagens na adoção da teoria do “stare decisis” (ou
dos precedentes judiciais obrigatórios). Já conversamos sobre as
alegadas “rigidez” e “complexidade” dos sistemas fundados em precedentes
vinculantes. Chegou a hora de tratarmos de outras desvantagens
apontadas: a morosidade no aperfeiçoamento do direito, a ocorrência de
muitas distinções ilógicas nos sistemas baseados em precedentes
vinculantes e a suposta ofensa ao princípio da separação de poderes.
Comecemos pela apontada “morosidade no aperfeiçoamento do direito”
nos sistemas jurídicos fundados em precedentes vinculantes, desvantagem
essa que estaria associada a já comentada “rigidez” desses sistemas. De
fato, há quem diga que a rigidez da doutrina faz como que o
desenvolvimento do sistema jurídico do país seja lento, tomado o termo
desenvolvimento como alteração da regra jurídica para atualizá-la com as
mudanças de valores, com o progresso da ciência etc. Diz-se que, por
exemplo, na Inglaterra, além de demorar bastante para que uma decisão
chegue à sua Suprema Corte (do Reino Unido), a doutrina do “stare
decisis”, por seus próprios termos, exige a obediência às decisões
passadas, o que, os juízes, sobretudo os mais conservadores, tendem a
seguir à risca. Não resta dúvida de que, sob condições sociais em
alteração ou em áreas do Direito para as quais a legislação não tenha
sido atualizada, atribuir valor sagrado ao precedente seria um
formalismo exagerado e uma ofensa ao que se costumou chamar de
“equidade” material.
Mas aqui deve ser feita uma observação. Um sistema jurídico baseado
na lei em sentido estrito também pode ser estático. Aliás, por esse
simples fato, tende a ser mais estático, porque os câmbios de
jurisprudência são bem mais comuns (pelo menos, normalmente, devem ser)
que as alterações na lei. Esse é um fato que reconhecem Roberto Rosas e
Paulo Cezar Aragão (em seus “Comentários ao Código de Processo Civil”,
publicado pela RT): “Indubitavelmente a jurisprudência tem se antecipado
às legislações na solução dos conflitos de interesses. Não poderia ser
de outra forma porque a legislação é mais estática do que o juiz. (…)
Não foi sem razão a perspicaz nota de Seabra Fagundes sobre a posição do
juiz brasileiro na aplicação do Direito, concorrendo para o
aprimoramento do Direito como condição de paz e de justiça entre os
homens. Aplicando a lei, adequando-a à utilidade social e ao bem-estar
do indivíduo”.
Um outro problema apontado em sistemas fundados em precedentes
vinculantes está relacionado ao uso indiscriminado da distinção
(“distinguishing”), talvez a mais comum das técnicas utilizadas para a
não aplicação de um precedente que, em princípio, seria de seguimento
obrigatório. Em linhas gerais, diz-se que, se os fatos fundamentais de
um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não
coincidem com os fatos fundamentais do caso posterior em julgamento, os
casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior,
como distintos. Consequentemente, o precedente não será seguido.
O problema é que o uso exagerado do poder de distinguir pode levar a
que certas questões do direito se tornem complexas demais. Isso porque
as diferenças entre certos casos se tornam muito sutis, e as decisões
tomadas parecem, de certo modo, ilógicas. Essas “distinções ilógicas”
(“illogical distinctions”) são episódios raros, mas é uma verdade que
não pode ser escondida.
Além das objeções “práticas” à doutrina do “stare decisis”
comentadas acima, faz-se também objeções “principiológicas”. Uma delas é
a suposta ofensa ao princípio da separação de poderes. Como sabemos, a
Revolução Francesa, a partir da desconfiança nos juízes do Antigo
Regime, consagrou uma concepção rígida de separação de poderes pela qual
o poder legislar deveria ser era exercido através dos representantes do
povo soberano, nomeado frequentemente de Parlamento, cabendo aos juízes
apenas a aplicação passiva da lei. Nos termos dessa concepção, a
doutrina do “stare decisis”, sobretudo quando se concebe o precedente
judicial como criador de Direito, implicaria ofensa ao princípio da
separação dos poderes.
Todavia, de um tempo para cá, como explica Mauro Cappelletti (em
“Constitucionalismo moderno e o papel do Poder Judiciário na sociedade
contemporânea”, artigo publicado na Revista de Processo), temos
presenciado o desenvolver de uma nova concepção do princípio da
separação dos poderes. É uma “nova revolução”, um novo
constitucionalismo, que abandona a ideia da rígida “séparation des
pouvoirs” e consagra a ideia de uma “sharing of powers”. Cândido Rangel
Dinamarco (na obra “Fundamentos do processo civil moderno”, publicada
pela Malheiros) também vislumbra o desenvolvimento de uma nova concepção
da separação de poderes, com uma abertura do sistema de tutela
jurisdicional no sentido da transmigração do individual para o coletivo
(pequenas causas, ação direta, ação civil pública, mandado de segurança
coletivo etc.). Segundo Dinamarco, “essa nova postura constitui estrada
aberta para a superação daquele rígido esquema lógico de índole
estritamente dedutiva, que tendia a reservar ao legislador o trato
abstrato e genérico dos direitos e a confinar o juiz no âmbito dos
negócios concretos, específicos e individuais”. Na verdade, no nosso
constitucionalismo, os exemplos de exercício, por um dos Poderes do
Estado, de função típica de outro, são bastante conhecidos. O próprio
controle de constitucionalidade concentrado e em tese, por exemplo, ao
qual ninguém se opõe, representa, muitas vezes, uma atividade
legislativa negativa, para usar a expressão do grande Hans Kelsen.
Por fim, ainda teríamos a objeção à doutrina do “stare decisis”
fundada na ofensa ao princípio da persuasão racional do juiz. Mas sobre
isso, por falta de espaço, conversaremos na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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