“Relação das últimas tiranias, e crueldades, que
os pérfidos holandeses usaram com os moradores do Rio Grande, escrita pelo
Capitão Lopo Curado aos dois mestres de campo, e governadores da liberdade de
Pernambuco, João Fernandes Vieira, e André Vidal de Negreiros, cujo traslado de
verbo ad verbum, é o seguinte:
Em particular aviso a Vossas Senhorias do
memorável sucesso do Rio Grande, depois das duas matanças que fizeram os
tiranos flamengos, acompanhados de bárbaros Tapuias e Pitiguares, e nesta
derradeira, certo que é incrível a tirania, no qual servirá de maior exemplo, e
que escureça todas quantas tem sucedido no mundo em tempo dos imperadores
romanos antigos; memória que haverá enquanto durar o dito; pois o sangue
derramado de tantos inocentes, clama aos céus justiça, e aos príncipes da terra
favor, a tomar vingança de tais tiranos: e para relatar os sucessos, e modos
que houve entre os ditos flamengos de suas deslealdades, e traições, é tomar o
tempo a Vossas Senhorias, ainda que o mesmo o há de manifestar; porque tais
tiranos quer Deus que os conheçam, para que a cristandade veja, que mais vaI
passar por todos os tormentos da morte, que viver morrendo entre o nome de tal
gente. Patente é a Deus, e ao mundo, e o será daqui em diante às mais remotas nações
dele, a traição que usaram os ditos holandeses com os pobres moradores do Rio
Grande, estando em uma cerca recolhidos por se livrarem dos bárbaros Tapuias, e
brasilianos, passando, e padecendo nela havia três meses notáveis misérias, nos
quais foram acometidos por muitas vezes dos tais inimigos, que ainda não fartos
do sangue, que fizeram derramar ao povo de Cunhaú, e casa forte de João de
Lostao, pretenderam esgotar o de esta pobre gente cercada, para que nela se
acabasse o nome português daquela Capitania, para o que dezesseis dias, e
noites os tiveram em cerco, assim Tapuias, como brasilianos e flamengos, nos
quais lhes deram terríveis batarias sem as poderem levar, usando de um ardil,
para com ele fazer a obra que pretendiam. E foi, que armaram uns carros
emadeirados, levando-os diante de si, com mosquetaria, e outros instrumentos de
guerra para chegarem à dita cerca, mas não foi bastante este artifício, porque
setenta portugueses que havia nela, ainda que poucos no número, Irias muitos no
esforço, os arredaram de si de maneira com quinze armas de fogo, e os mais com
paus tostados, que lhe quebraram os carros, e os puseram em fugida com perda do
dito inimigo de vinte homens, sem da nossa parte perigar nenhum, e vendo os
ditos flamengos que os não podiam render, lhes cometeram que se entregassem,
pois eles eram ali vindos da fortaleza, e seu tenente, para os guardarem assim
dos ditos selvagens, como dos flamengos moradores, que com os ditos estavam, os
quais lhes tinham feito aquela guerra. E vendo os ditos moradores o tão pouco
que se podiam fiar da palavra de tiranos, disseram, que enquanto ali estivessem
Tapuias e brasilianos, queriam antes morrer, que se entregar; e que tinham bom
exemplo na traição das mortes, que fizeram no Cunhaú na casa forte de João de
Lostao, ao que lhes responderam, que em nome de S. Alteza o Príncipe de Orange,
lhes requeriam se entregassem, e não usassem mais de armas, prometendo-lhes
vidas, e fazendas, na maneira que até então os gozavam, e fazendo o contrário
que mandariam vir uma peça de artilharia da fortaleza, e com ela os bateriam, e
não escaparia nenhum, e os teriam por alevantados. E considerando os ditos
cercados, que já não tinham mantimentos nenhuns, nem munições para sustentar as
armas, fiados nas palavras dos ditos flamengos, lhes disseram que fizessem
disso um papel, o qual fez o tenente, e os mais oficiais de guerra, em que se
assinaram, e nele lhes prometeram de os guardar dos ditos selvagens Tapuias, e
brasilianos, e conservar com a vida, e fazenda; e feito o sobredito, pediram
que em reféns haviam de levar cinco moradores para a fortaleza, o que lhes foi
concedido: os quais foram Estêvão Machado de Miranda. Vicente de Souza Pereira,
Francisco Mendes Pereira, João da Silveira, Simão Correia, deixando eles dez soldados
de guarda da dita cerca, e gente que nela estava; e tomaram todas as armas de
fogo, e paus tostados com que os moradores se tinham defendido. Estavam mais
recolhidos para segurarem suas vidas na fortaleza o P. Vigário Ambrósio
Francisco Ferro, Antônio Vilela o Moço, Joseph do Porto, Francisco de Bastos, e
Diogo Pereira, e prisioneiros João Lostrao Navarro, Antônio Vilela Cide. Em
dois do presente mês de outubro chegou uma lancha do Recife ao Rio Grande, e
conforme a execução que se fez, trouxe ordem para matar a todos os moradores de
dez anos para cima, como ao diante se verá; em três do dito mês véspera de S.
Francisco mandaram os flamengos da fortaleza sair a todos os moradores que nela
estavam, que foram os acima nomeados dizendo que já estavam seguros dos
Tapuias, porquanto se tinham ido para o sertão, e que fossem em companhia da
tropa que ia em sua guarda para a cerca aonde estavam os outros moradores,
visto haver lá muitos mantimentos com que se podiam sustentar, e não estando na
dita fortaleza passando fomes por falta de mantimentos, e que iam seguros
porquanto tinham lá na dita cerca aos ditos dez soldados, que lhes tinham
deixado para sua guarda. No mesmo ponto lançaram aos ditos, que estavam na
fortaleza, e em batéis os levaram pelo rio acima três léguas, acompanhados dos
soldados, e os lançaram fora no porto do dito rio, chamado de Uruauassu meia
légua da dita cerca, na qual acharam passante de duzentos brasilianos bem
armados com Antônio Paraupaba escaramuçando em um cavalo, e tanto que estiveram
em terra, os flamengos despiram nus aos ditos moradores, e os mandaram pôr de
joelhos (o que eles receberam COM muna paciência, e os olhos em Deus) e logo
chamaram aos brasilianos para os matar, o que se executou logo, fazendo nos
corpos destes mártires tais anatomias, que são incríveis; e não contentes com
elas, os ditos flamengos os ajudaram a matar, assim arrancando os olhos a uns,
e tirando as línguas a outros, e cortando as partes vergonhosas, e
metendo-lh'as nas bocas. No mesmo instante que os acabaram de matar, foram os
ditos flamengos à cerca deixando os brasilianos no lugar em que tinham feito os
martírios nomeados para a segunda execução; e aos moradores disseram, que os
senhores do Concelho do Recife os mandavam chamar, para o que estava um barco
logo para partirem, e que fossem em sua companhia para os embarcarem, e vendo
os sobreditos que era a viagem tão apertada, sem lhes darem demora alguma, e
sem saberem dos que eram mortos, e disseram todos juntos, e cada um por si, que
eles iam a morrer, porque seus corações lh'o diziam; e despedindo-se com
lágrimas, e suspiros de mulheres, filhos, irmãos e irmãs, foram todos dando
graças a Deus, e mui conformes, por morrerem por seu Deus, e por seu Rei, e sua
pátria, e dizendo estas mesmas palavras aos tiranos algozes que os levavam; e
chegando aonde estavam os sobreditos brasilianos lh'os entregaram, e com a
tirania, e desumanidade que em seus corações habita, os mataram, sem ficar
nenhum; na qual execução se fizeram as maiores anatomias, e martírIos nos
corpos destes mártires, que são coisas que a boca não pode pronunciar. E
acabante as ditas mortes deixaram os corpos postos ao sol, e sobre a terra, e
sem sepultura nenhuma, e os membros tão divididos em partes, que não se
conhecia quais eram os de cada um dos ditos mártires. No mesmo instante foram
os mesmos tiranos flamengos, e brasilianos à cerca, aonde somente ficaram as
pobres viúvas, e órfãos, e as acabaram de despojar de todos seus bens,
deixando-as a muitas nuas, e com outros opróbrios, que passo em silêncio.
Julguem agora Vossas Senhorias o que fariam as pobres viúvas, quando souberam
dos mesmos algozes, que todos os homens eram mortos, e tão cruelmente, para que
os olhos se aprestaram a fontes, e as bocas, para as funerais lamentações de
seus consortes, pois é de ver (meus senhores) que até isto estes tiranos
tiraram a esta pobre gente, porque querendo lamentar com suspiros, e lágrimas
seus desventurados dias; estes tais lh'o não queriam consentir, e as fizeram
calar, ora com ruins palavras, ora com pés, e mãos, dando-lhe de bofetadas, e
coices, e ameaçando-as, que as haviam de matar se choravam; e por não passar em
silêncio nas pessoas, e nomes de alguns mártires, os declararei por a
constância que tiveram em suas mortes, e martírio, Antônio Baracho casado o
amarraram em um poste, e vivo lhe arrancaram a língua, e depois o coração, e
desta maneira morreu, cortando-lhe suas partes secretas, e metendo-lh'as na
boca ainda em vivo. A Mateus Moreira o abriram por as costas, e lhe tiraram
também o coração, e as últimas palavras, estando neste martírio, que disse,
foram louvar a Deus, dizendo: Louvado seja o Santíssimo Sacramento. E porque na
morte destes Inocentes, houvesse admiráveis circunstâncias, relatarei a Vossas
Senhorias algumas coisas que sucederam mais milagrosas que humanas. Um mancebo
por nome João Martins o levaram para morrer com os mais, e sendo todos mortos à
vista do sobredito, lhe cometeram que dariam a vida se tomasse armas contra sua
nação, a que ele respondeu com alegre rosto: Não me desampara Deus desta
maneira, e.c;sas tomei sempre contra os tiranos, e não contra minha Fé, Pátria,
e Rei. E que o matassem logo porque estava invejando as mortes de seus
companheiros, e a glória que tinham recebido, e quando o não quisessem matar,
ele mesmo os persuadiria a que o fizessem.
Dois mancebos casados, um chamado Manuel Alvres Iha, e outro
Antônio Femandes, depois de estarem em terra cheios de feridas, e nus da cinta
para cima, meteram as mãos nas algibeiras, e puxando cada um por sua faca, e investindo
com os brasilianos mataram logo a três deles, e feriram a quatro ou cinco,
fazendo isto com as ânsias da morte, e logo cairam mortos outra vez. Estêvão
Machado de Miranda tinha uma menina de sete anos sua filha na fortaleza em sua
companhia, e trazendo-a consigo a receber o martírio, vendo a dita menina que
os flamengos queriam matar a seu pai, como aos outros presentes, se abraçou com
ele, pedindo a vida do pai com as lamentações, e entendimentos de mulher de
muitos anos, e os flamengos a tiraram dos braços do dito pai, ao que lhe disse
o dito: Filha, dize a tua mãe que se fique embora, que no outro mundo nos vere.
mos. E desta maneira o mataram, e a menina tirou a saia depois do pai morto, e
se foi para ele, e cobrindo-lhe o rosto, e chorando, e pedindo que a matassem
também, a quem os ditos algozes lançaram mão da dita saia, e trouxeram a menina
a sua mãe, e ela, e os mais contaram o caso. Uma filha de Antônio Vilela o Moço
mataram sendo criança pequena, pegando-lhe os Tapuias à vista dos flamengos em
uma perna, e dando-lhe com a cabeça em um pau, e a fizeram em dois pedaços. E a
outra filha de Francisco Dias o Moço a mataram também, e a abriram em duas
partes com um alfange. E a uma mulher casada com Manuel Rodrigues Moura, depois
do dito morto, lhe cortaram as mãos, e os pés, e a sobredita mulher em três
dias naturais esteve deitada no chão viva, e acabou dando a alma ao Criador.
Diversos martírios, deram neste dia aos corpos dos mártires, e
houve nele muitos milagres patentes, vistos, que quis Deus mostrar que os tais
iam a gozar da bem-aventurança.
Sucedeu pois que aquela noite que padeceram se ouvisse uma música
no céu sobre a fortaleza do Rio Grande, e ouvindo-a a mulher de um flamengo
chamado Gesman governador das armas nesse Recife, se levantou chamando por
algumas mulheres, e também por suas escravas para que ouvissem a música que ia
no céu, o qual caso testificou a sobredita; certo presságio que foram os anjos
que acompanhavam as almas destes mártires para o céu. Na cerca donde tinham
saído os ditos mártires estava entre outras meninas uma filha de Diogo Pinheiro
de idade de oito anos, chamada Adriana, e dando-lhe vontade de chorar, entrou
para uma camarinha por não ser vista, aonde achou uma mulher com um azorrague
na mão, e lhe disse: Cala-te filha, que com este azorrague que aqui vês, hão de
ser castigados estes que fazem estas crueldades, como logo saberás.
Atribulada a menina saiu para fora, e vendo as mulheres a mudança
dela, lhe perguntaram o que tinha? E como assombrada contou o sucesso, e dai a
pouco chegou a nova dos Inocentes mortos, que certo bem parece que a Virgem
Senhora Nossa tem tomado o castigo destes tiranos à sua conta. Naquela mesma
noite houve grande cheiro de incenso na dita cerca, que durou muito tempo, e
foi patente a todos, sem se saber donde o dito cheiro procedia senão do céu.
Houve também entre estes mártires grandes penitências, sem saberem uns dos
outros, e ao dia que padeceram, jejuavam todos a pão, e água, assim os da
fortaleza, como os da cerca, não sabendo uns dos outros, ao outro dia por manhã
pediram licença as mulheres para irem a enterrar os corpos mortos, e não lh'o
consentiram; o que os escravos fizeram às escondidas, e não se achou um palmo
de pano para os amortalharem a nenhum, por deixarem as ditas mulheres em estado
que ficaram despidas de todo, achou-se que todos estes corpos estavam com
cilícios, e os que os não tinham com cordas cingidas, e algumas tão metidas por
a carne que mal apareciam. E sabe-se que durante o tempo que estavam cercados
houve extraordinárias penitências, e até os meninos as faziam, sendo todos nus,
e com cordas cingidas, e todos os dias se faziam procissões com um Santo
Crucifixo, esperanças claras destas almas estarem gozando da bem-aventurança.
Sobre a sepultura aonde foi enterrado o P. Vigário Ambrósio Francisco Ferro se
achou quinze dias depois da sua morte uma posta de sangue fresca sem corrução,
como se naquela hora fosse derramado, mostras bastantes, que o tal brada ao céu
justiça. Muitas outras coisas milagrosas sucederam, dignas de se recontarem,
que deixo ao tempo, no qual fio não passará, e todas acima declaradas foram
vistas, e juradas, e autênticas por vinte cinco mulheres que o inimigo botou
nesta Paraíba, com suas famílias, as ditas chegaram de maneira, e tão transfiguradas
que mais parecem pessoas ressuscitadas que viventes corpos.
O Bolestrate as mandou deitar aqui, e a algumas lhes concedeu
alguma roupa que traziam sobre os corpos, mas em as querendo desembarcar em
terra as despiram de maneira que apenas trouxeram camisas, as quais lhe
largaram por já não terem préstimo para serviço de outro corpo. Vossas
Senhorias perdoem o compêndio da carta, que lhes afirmo que se houvera de
relatar o que se tem passado naquela Capitania houvera mister muitas mãos de
papel, contudo o faço destas sobre ditas coisas acima, que não faltarão
curiosos para o fazer do mais que falta, porque Deus o permite, e manda que
sejam públicas as maldades destes tiranos.
Deus guarde a Vossas Senhorias, hoje vinte e três de outubro de
mil e seiscentos e quarenta e cinco anos. Lopo Curado Garro”