EDGAR BARBOSA, HUMANISTA DE TRATO CORDIAL
Valério Mesquita*
Ao lado de Alvamar Furtado,
Múcio Ribeiro Dantas e Floriano Cavalcanti, Edgar Barbosa formava um quarteto
de invejável saber jurídico na velha Faculdade de Direito da Ribeira, na década
de 1960, comentado e sussurrado com reverência por nós, seus alunos, pelos
corredores e salas da saudosa instituição.
Mas o professor não cabia num figurino único –
embora confortável, do ponto de vista intelectual –, de grande e admirável
jurista. Sua formação filosófica fizera dele um humanista no sentido lato, ou
seja, na medida em que nada do que fosse humano lhe era indiferente. Compará-lo
ao seu mestre Luís da Câmara Cascudo seria fazer justiça ao primeiro, e elevar
a estatura intelectual do segundo.
Por trás desse duplo verniz
jurídico e humanista, Edgar Barbosa encobria um homem cordial que só a pouco e
a vagar deixava transparecer no convívio com seus alunos. Já alertados por colegas
mais antigos, nós também não demoramos a descobrir outros traços salientes da
personalidade complexa de nosso mestre em Direito
Constitucional. Isso acontecia até com certa regularidade, na
medida em que fui também me habituando a integrar uma espécie de círculo de
ouvintes do velho professor para as conversas que se sucediam à aula, mas que
acontecia ali mesmo, juntamente com Carlos Gomes, Claudio Emerenciano, Nildo
Fagundes e outros colegas.
Visava transmitir sabedoria,
conhecimento, humanismo. Com essa preocupação sempre alerta, o grande estilista
fazia incursões pela Antiguidade Clássica à cata de exemplos, de modelos, de
parâmetros comparativos com os problemas de nosso tempo, ilustrando-os e
esclarecendo-os, como costumava fazer nos seus ensaios e artigos jornalísticos.
No jornal A República, na década de 1920, como
revela o volume de textos e crônicas, organizado pelo jornalista Nelson
Patriota e lançado este ano pela editora da UFRN. Ali se podem detectar alguns
temas que serão amadurecidos pelo futuro jurista, como o direito do voto
feminino, os problemas enfrentados pelo ensino público, a importância da
liberdade de expressão para a vida política brasileira, entre outros.
A esses temas, acrescentou o
mestre considerações líricas, evocações nostálgicas, quadros recortados
cuidadosamente de sua memória afetiva sobre a sua telúrica Ceará-Mirim natal,
com seus vales férteis como se fora recortada por um Nilo transplantado para lá
por um sortilégio de Deus. Cenas de infância, tipos populares que chamaram sua
atenção de menino imaginoso, acontecimentos únicos que ficaram nos porões da
memória, tudo isso constituiu matéria literária em suas mãos.
Às vezes me flagro entrando,
pela via franca da memória, na sala de aula da Faculdade de Direito, na velha Ribeira
que, como o beco recantado pelo poeta Manuel Bandeira, está “intacto, suspenso
no ar”. Nesses momentos, sinto que é hora de reler algum tópico do livro Imagens do Tempo, onde recolheu crônicas
dispersas nos jornais locais, porque sabia que deveria preservá-las em livro. Ao ler o perfil
de um Henrique Castriciano, de um Juvenal Lamartine, de um José Gonçalves ou de
um Padre Monte, ou ainda uma crônica dedicada ao jasmineiro de Auta de Souza,
um retrato de Vila Flor, a descrição de um velho engenho, tudo isso me confirma
que o escritor memorialista soube entender como poucos a alma patrícia do homem
potiguar, seus valores essenciais, que outro mestre, Luís da Câmara Cascudo,
resumiu à perfeição num livro juvenil.
Recordar Edgar Barbosa
termina por ser também um exercício de saudade sem saudosismo, porque se faz em
contato com sua obra, a qual, pelas lições que continua a nos dar, permanece
aberta e receptiva às questões da nossa época. Como ex-aluno recordo-o com
emoção.
(*) Escritor
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