As contradições (IV)
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
No nosso papo da semana passada, tratamos dos critérios para a solução
das contradições ou antinomias jurídicas: o hierárquico, o de
competência, o cronológico e o de especialidade. Em regra, fazendo uso
desses critérios, isolada ou conjuntamente, o aplicador do direito
deverá encontrar uma solução para a aparente antinomia.
Entretanto, os critérios de solução das antinomias jurídicas acima
referidos, na medida em que levam em conta apenas uma das
características das proposições em conflito – hierarquia, competência,
cronologia ou especialidade – são limitados. Como explica Victoria
Iturralde Sesma em “Aplicación del derecho y justificación de la
decisión judicial” (Editora Tirant lo Blanch, 2003), isoladamente, “o
critério hierárquico resolve as contradições entre enunciados de nível
hierárquico diferente, mas igualmente competentes, de igual generalidade
e publicados num mesmo momento; o de competência, entre enunciados em
que um deles provém de autoridade incompetente, mas que são ambos de
mesmo nível hierárquico, de igual generalidade e foram publicados num
mesmo momento; o cronológico, entre enunciados publicados em momentos
diferentes, mas de mesmo nível hierárquico, de competência e de
generalidade; e o de especialidade, entre enunciados de graus de
generalidade/especialização diversos, mas de mesmo nível hierárquico,
igualmente competentes e publicados num mesmo momento”.
Na
verdade, os casos de antinomias jurídicas normalmente possuem
descoincidências em mais de uma dessas características, como, por
exemplo, quando uma das normas em conflito é hierarquicamente superior,
mas cronologicamente anterior, e a outra é hierarquicamente inferior,
mas cronologicamente posterior. Aqui a contradição vai além do conteúdo
dos enunciados, chegando aos próprios critérios a serem utilizados para
as suas soluções. E, a depender do critério adotado, se terá soluções
diversas. Essas contradições, que se dão ao nível dos próprios critérios
de solução, são chamadas de “antinomias de segundo grau”.
Existem alguns critérios para solucionar essas antinomias de segundo
grau (embora não todas, como se verá a seguir). São, portanto,
“metacritérios”, que se prestam a resolver antinomias entre critérios.
Grosso modo, podemos dizer que (i) o critério hierárquico prevalece
sobre os critérios cronológico e de especialidade. Damos como exemplo o
caso de um conflito entre uma norma constitucional e uma lei ordinária
posteriormente editada. Temos uma antinomia entre os critérios
hierárquico e cronológico, que facilmente se resolve em prol do primeiro
(se usássemos, equivocadamente, o critério cronológico, daríamos amparo
à norma ordinária). Aliás, do contrário, o princípio da hierarquia das
normas perderia o seu sentido, com Kelsen (1871-1973) se revirando no
túmulo da sua “pirâmide”. Semelhantemente, podemos afirmar também que
(ii) o critério de competência prevalece sobre os critérios cronológico e
de especialidade. O contrário seria ilógico. “Apenas em caso de
conflito entre enunciados [de autoridades igualmente] competentes
poderão ser utilizados os critérios da especialidade e cronológico”, bem
anota Victoria Sesma.
Mas nem sempre a coisa é assim, tão preto
no branco. Peguemos o caso da (iii) antinomia de segundo grau entre os
critérios cronológico e de especialidade, sendo uma das normas posterior
e geral e a outra anterior e especial. A primeira seria privilegiada
pelo critério cronológico; a segunda, pelo critério da especialidade. Em
regra, é verdade, terá lugar o brocado ou metacritério latino “lex
posterior generalis non derogat speciali” (“a lei geral posterior não
revoga a lei especial anterior”). Entretanto, esse é um caso que admite
exceções, a depender dos conteúdos e dos desideratos das normas em
conflito. Como explica Victória Sesma, “não se pode estabelecer uma
regra clara em relação ao conflito entre os critérios cronológico e de
especialidade, que deverá ser resolvido, caso a caso, pelo aplicador do
direito. Um dos fatores a ter em conta nestes casos é a maior ou menor
justificação do enunciado especial, avaliando se ele contém uma
normatização verdadeiramente justificada ou uma discriminação sem
fundamento algum”. E esse dilema, pode ter certeza, não é incomum.
E ainda há a questão do aparente (iv) conflito entre os critérios
hierárquico e de competência. Qual prevaleceria? Aqui, penso, estamos
diante de um falso dilema. Esse conflito (de segundo grau) inexiste. O
fundamental é estabelecermos se estamos diante de um conflito
hierárquico ou de competência. Se é de competência, este critério
prevalece, como na relação entre uma lei de determinado estado da
Federação e a Constituição de outro. Aquela pode prevalecer, se
competente para tanto. Mas se é uma relação hierárquica, em algum âmbito
de aplicação coincidente, a norma superior deve prevalecer, como no
conflito entre uma norma do Código Penal (diploma “competente” por
excelência para definir delitos e penas) e a Constituição Federal.
De toda sorte, uma coisa é certa. No caso extremo de antinomia de
segundo grau sem metacritério para solução – e podemos até imaginar um
conflito entre dois enunciados de mesma hierarquia, igualmente
competentes, cronologicamente coincidentes e com o mesmo grau de
generalidade –, o juiz terá de decidir, optando por um deles. Dizem que
pelo mais “justo”. Só não me perguntem o que “justo” significa. Embora
com tantos anos na lida, ainda não sei bem o que danado isso é.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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