As contradições (II)
Na semana passada, tratei aqui das contradições ou antinomias
normativas. Além de tentar explicar o que seriam elas, comecei a
classificá-las de acordo com o que é ensinado pela doutrina
especializada. E deu tempo de vermos a divisão das antinomias em reais
ou aparentes.
Sigamos hoje na mesma toada, primeiramente levando
em consideração o âmbito em que se dá a contradição aventada, com a
classificação das antinomias em: de direito interno, de direito
internacional ou de direito interno-internacional. De modo bem
simplificado, a antinomia de direito interno é a aquela que se dá entre
normas de um mesmo ordenamento jurídico. A antinomia de direito
internacional é aquela que se dá entre normas de direito internacional,
tais como os tratados e as convenções internacionais, os costumes
internacionais, os princípios gerais de direito reconhecidos pelas
nações civilizadas, as decisões judiciais das cortes internacionais e
por aí vai. Já a antinomia de direito interno-internacional é aquela que
se dá entre norma de direito interno de um país e norma de direito
interno de outro país ou entre norma de direito interno de um país e
norma de direito internacional.
As antinomias podem ser também
classificadas, levando em consideração a extensão da contradição, em:
total-total, total-parcial e parcial-parcial. A antinomia é total-total
quando as normas em cotejo não puderem ser de forma alguma aplicadas sem
conflitar totalmente uma com a outra. A antinomia é total-parcial se
uma das normas não puder de modo algum ser aplicada sem entrar em
conflito com a outra norma; mas esta, por sua vez, por ter uma extensão
ou âmbito de validade mais amplo, pode ser em parte aplicada sem
conflitar com a primeira. Já a antinomia parcial-parcial ocorre quando
as duas normas estão em antinomia entre si apenas parcialmente,
restando, em ambas, partes que não estão em conflito. Em outras
palavras, as duas normas possuem um campo de aplicação em conflito, em
relação uma à outra, e campos de aplicação em que não há conflito algum.
Por derradeiro, quanto ao conteúdo das normas, temos a
classificação das antinomias em próprias e impróprias. E, aqui, terei o
prazer de voltar ao meu tempo de estudante de bacharelado para citar
trechos do “Compêndio de introdução à ciência do direito” (Editora
Saraiva, 1989) da professora Maria Helena Diniz. Nas palavras da autora,
a antinomia própria se dá “quando uma conduta aparece ao mesmo tempo
prescrita e não prescrita, proibida e não proibida, prescrita e
proibida”. Como exemplo, ela aponta a antinomia entre norma do Código
Militar, que prescreve a obediência incondicionada às ordens de um
superior, e prescrições do Código Penal, que proíbem certas condutas
(matar, privar alguém de liberdade etc.). E detalha: “quando um capitão
ordena o fuzilamento de um prisioneiro de guerra, o soldado vê-se às
voltas com duas normas conflitantes – a que o obriga a cumprir ordens do
seu superior e a que o proíbe de matar um ser humano. Somente uma delas
pode ser tida como aplicável, e essa será determinada por critérios
normativos”. Já a antinomia imprópria, que demanda uma análise mais
pormenorizada do conteúdo da norma, Maria Helena Diniz a subdivide em
algumas espécies. A antinomia de princípios, relacionada às ideias
basilares do ordenamento jurídico, acontece quando duas normas protegem
princípios/valores opostos, como a liberdade e a segurança. Antinomia
valorativa, quando o legislador não for fiel a uma valoração por ele
próprio realizada, como, por exemplo, ao prescrever uma pena mais leve
para delito mais grave e uma pena mais grave para um delito mais leve.
Se um Código Penal punir menos severamente o infanticídio do que a
exposição de criança a perigo de vida pelo enjeitamento, “surge esse
tipo de antinomia, que deve ser, em geral, aceita pelo aplicador [do
direito]”. A antinomia teleológica, quando temos uma “incompatibilidade
entre os fins propostos por certa norma e os meios previstos por outra
para a consecução daqueles fins”. Por fim, a autora também fala da
antinomia técnica, “atinente à falta de uniformidade da terminologia
legal”, dando, como exemplo, “o conceito de posse em direito civil”, que
“é diverso daquele que lhe é dado em direito administrativo”. Ainda
segundo a querida professora, essas antinomias são chamadas de
“impróprias porque não impedem que o sujeito aja conforme as normas,
mesmo que com elas não concorde”. Já as antinomias próprias
“caracterizam-se pelo fato de o sujeito não poder atuar segundo uma
norma sem violar a outra, devendo optar, e esta sua opção implica a
desobediência a uma das normas em conflito, levando-o a recorrer a
critérios [de solução das antinomias] para sair dessa situação”.
Depois dessa longa citação, só me resta também “plagiar” o jovem
Casimiro de Abreu (1839-1860): Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da
minha vida/Da minha universidade querida/Que os anos não trazem mais!
E, feito isso, ainda saudoso, prometo tratar, nas semanas vindouras,
dos famosos critérios para a solução das antinomias jurídicas.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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