Sobre Jean Bodin (IV)
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Na semana passada, eu prometi fazer um balanço sobre Jean Bodin
(1530-1596), como homem e como pensador. Cumpro agora, dizendo, desde
logo, que minha análise sobre Bodin é deveras positiva.
É
verdade, e eu não nego, que a sua “Demonomania dos feiticeiros” (“De la
demonomanie des sorciers”, de 1580), nos mostra um homem impregnado de
concepções místicas. Suas menções a demônios, a bruxas e aos
procedimentos para os julgamentos destas deram a Bodin uma fama de homem
impiedoso. Mas esse misticismo misturado a um certo fervor religioso é
uma característica da época, presente, aliás, em quase todos os grandes
espíritos do seu tempo. E, por outro lado, o seu manuscrito “Colóquio
entre sete sábios de diferentes sentimentos acerca dos segredos das
coisas sublimes” (“Colloquium heptaplomeres: des secrets cachez des
choses sublimes entre sept sçavans qui sont de differens sentimens”, de
1593), que narra diálogos/discussões entre um filósofo naturalista, um
católico, um luterano, um calvinista, um judeu, um muçulmano e um
cético, é frequentemente tido como um dos precursores da tolerância
religiosa no mundo ocidental.
Há ainda outros aspectos da vida e
dos escritos de Jean Bodin, pouco explorados, que refletem sua empatia
para com o ser humano. Bodin, em seus “Les six livres de la République”
(1576), por exemplo, se contrapõe à equivocada tese de Aristóteles de
que o caráter universal e permanente do instituto da escravidão seria
prova de que existiriam povos e homens naturalmente a ela vocacionados.
Bodin argumenta, com razão, que a existência de certo fenômeno, mesmo
que perene, não é prova de que ele se dá por vontade de Deus; caso
contrário, toda e qualquer impiedade, desde que permanente, poderia ser
atribuída à vontade Dele. Para Bodin, nem mesmo um suposto direito de
guerra justificaria a escravidão. Prisioneiros não são animais. A partir
de exemplos do passado (da Antiguidade Clássica e mais recentes), de
crueldades e revoltas, Bodin se opunha à escravidão e, mais ainda,
depois de abolida (na Europa, por volta do século XIII), à sua
reintrodução no mundo de então. Ele critica especialmente a expansão
colonial portuguesa (mas não somente ela), que espalhou o tráfico de
africanos pelo Novo Mundo, a partir da ambição de mercadores, de
traficantes e de outros interessados. Para ele, somente um poder
monárquico forte, absoluto, poderia dar um fim a essa indesejável
empreitada. Sem dúvida, com esse Bodin, eu simpatizo deveras.
E
mesmo em relação à soberania e ao absolutismo, Bodin não foi tão
“despótico” assim. Lembremos, como o faz Paulo Jorge Lima em seu
“Dicionário de filosofia do direito” (Editora Sugestões Literárias,
1968), que ele admitia que certos direitos dos cidadãos “fossem
invioláveis mesmo ante o poder do rei, porque situados no âmbito do
direito natural”. O monarca que os viola “transforma-se em tirano, a
quem não é mais devida obediência”. Aqui Bodin também me representa.
Apesar das limitações de sua época, é preciso também reconhecer o
espírito marcadamente científico de Bodin, que supera em muito o de
Maquiavel (1469-1527) e daqueles que buscaram nos evangelhos a
explicação e a solução para os problemas políticos de então. É preciso
reconhecer a vasta cultura de Bodin em quase todos os ramos do saber.
Como aponta Cabral de Moncada em sua “Filosofia do Direito e do Estado”
(vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), enquanto Maquiavel –
realmente é impossível não sucumbir à tentação de comparar os dois – era
um pensador “avesso a especulações teóricas, Bodin, pelo contrário,
devido a sua educação humanista, jurídica e teológica, representava o
tipo oposto do ‘pensador abstrato’ e era, antes de tudo, um teórico”.
Maquiavel partia das “necessidades práticas da vida” para construir suas
ideias; Bodin, sem perder de vista essas necessidades, partia do
direito, de viés naturalista, para formatar sua visão do Estado. De
fato, Bodin teve uma carreira no serviço público que, embora não
excepcional, lhe deu um bom conhecimento da política francesa.
Entretanto, sem dúvida, como anota Jean Touchard em sua “Historia de las
ideas políticas” (Editoral Tecnos, 2013), ele deve bem mais o seu saber
“às suas vastíssimas leituras, à sua curiosidade universal. Bodin, que
lê o hebraico e as línguas clássicas, se interessa por todos os
fenômenos sociais. É jurista, historiador, economista (a famosa ‘Réponse
au paradoxe de M. de Malestroict’ é de 1568) e também filósofo. Não
chegou a publicar seu pouco ortodoxo ‘Heptaplomeres colloquium’ [uma
utopia social e religiosa, antes de qualquer coisa], no qual se percebe
já o seu ‘esprit fort’. Sua ‘Demonomanie des sorciers’ (1580) nos mostra
um homem impregnado de concepções mágicas, à semelhança dos grandes
espíritos de seu tempo. A cultura de Bodin tem as dimensões e a ambição
enciclopédica do humanismo do Renascimento. Sua ambição intelectual,
quando compõe os ‘Les six livres de la République’ (1576), está à altura
de sua erudição; trata de fundar a ciência política e traçar, ao mesmo
tempo, as vias para o endireitamento da França”.
Humanista,
historiador, jurista, filósofo e teólogo (com deslizes calvinistas
huguenotes), Bodin formatou uma política absolutista, no interesse da
unidade e da grandeza do seu Estado francês, que, antes de mais nada,
mostrou ser a real e urgente necessidade do momento histórico. Talvez
esteja aí, na coincidência da política certa para o momento certo, a
razão da enorme influência das suas ideias.
Mas a doutrina da
soberania absolutista de Bodin foi também e sobretudo (posso até dizer)
um salto para o futuro. E é isso o que nós veremos, finalmente, na
semana que vem.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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