12/03/2019


Sobre Jean Bodin (II)
Como dito no nosso artigo da semana passada, Jean Bodin (1530-1596) forma, ao lado de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e de Thomas Hobbes (1588-1679), a denominada “trindade do absolutismo”. Mas quais foram as principais ideias desse francês, que é considerado um dos fundadores – e, portanto, um dos seus gigantes – da ciência política?
Antes de mais nada, é preciso contextualizar a vida e a obra de Bodin. Ele viveu numa época de transição do antigo feudalismo, do poder disperso nas mãos de vários “senhores”, para a era dos estados centralizados. Ele presenciou a consolidação de direitos, tais como o da propriedade privada, hoje tão caros para nós. Ele sofreu com a anarquia espiritual causada pelas guerras religiosas na França a partir da segunda metade do século XVI. Ele sobretudo viveu numa França em plena afirmação inexorável – e certamente independente da sua vontade – da monarquia absoluta, que ele compreendeu, aceitou e, mais do que isso, justificou. Assim, como fiel súdito do rei da França e pensando na unidade e no sucesso do seu Estado, ele, ao mesmo tempo, retrata e formata as ideias absolutistas de então. Bodin, portanto, assim como Maquiavel (e com mais sucesso do que este, sob o ponto vista da sobrevivência política no regime vigente), é também fruto do seu tempo.
Bodin acreditava haver três formas para o exercício do poder estatal: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Bodin, com inteira razão, abominava a desordem e o desgoverno. E, para combater esses males, ele faz uma opção clara pela monarquia, fundamentando seu pensamento na história dos povos, na autoridade de grandes pensadores e na crença de que é impossível governar dando ou recebendo ordens de iguais. Para ele, apenas na monarquia absoluta, a soberania – conceito importantíssimo para Bodin, do qual trataremos mais tarde – poderia ser exercida na sua completude e perfeição.
Bodin faz uso, em prol do Estado absolutista francês (que, séculos depois, com a Revolução Francesa, restará também conhecido como o “ancien régime”), da antiga doutrina da origem ou do direito “divino” dos reis. Como explicam os autores de “O livro da política” (publicado pela Editora Globo em 2013), “para Bodin, a fonte da legitimidade do soberano era a lei natural e o direito divino dos reis – o código moral da sociedade e o direito do monarca de governar, ambos vindos direto de Deus. Nisso, Bodin se opunha ao conceito de que a legitimidade soberana viria de um contrato social entre o governante e seus súditos, uma ideia mais tarde desenvolvida pelos pensadores iluministas como o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau”.
Entretanto – e aqui vai um ponto marcadamente favorável a ele, se comparado a Maquiavel –, para Bodin existiam algumas limitações ao poder do monarca absoluto, impostas pelo que ele chama de leis naturais e leis divinas, anteriores ao próprio soberano, uma vez já existentes na natureza ou criadas por Deus (no caso, o Deus cristão). Se o monarca é o primeiro servo de Deus, “todos os príncipes estão obrigados pelas leis divinas, não podendo contrariá-las, sob pena de incorrer em crime de lesa majestade e mesmo em guerra contra seu Deus”, diz Bodin, mais ou menos com essas palavras, em conhecido trecho de “Da República” (“De Republica”, 1586). Apesar de Bodin não apreciar a ideia de democracia (como regime político ou como forma de governo), ele discordava da concepção maquiavélica de que o soberano podia tudo, governando sem limites. Para Bodin, os monarcas, para governar, precisavam ter o poder absoluto, mas teriam, entretanto, de prestar contas a Deus e à natureza das coisas. E a obediência ou não a essas leis naturais e divinas é que faz a diferença entre um justo poder monárquico e a tirania.
Assim, como afirma Kurt Schilling, em “História das ideias sociais” (Zahar Editores, 1974), “Bodin não mais fez príncipes absolutos, isentos de tutela, puros déspotas e tiranos. Onde em Maquiavel o novo pensamento político de uma regeneração da vida do povo se verifica por meio de grandes objetivos em política externa e interna e onde o caminho se acha aberto para o Estado nacional, em Bodin somente se encontra uma reminiscência cristã-humanista bastante débil do direito natural. Recusou expressamente o maquiavelismo, isto é, a doutrina segundo a qual o monarca a serviço do Estado deve poder até cometer injustiças. Entendia ele que o poder legislativo e o poder autoritário absolutos dos príncipes deviam estar subordinados à razão e ao direito natural. Mas, para tanto, baseou-se simplesmente na religião; na religião, é verdade, enquanto assunto pessoal, que ocupa um lugar diminuto na doutrina da soberania de direito divino dos Estados temporais isentos de toda tutela”.
Ponto para Bodin, definitivamente.
No mais, em sua obra, Jean Bodin dedicou grande atenção à ideia de soberania, que seria “o cimento das relações sociais”, estando intimamente relacionada ao absolutismo e à perpetuidade do poder. Todavia, especificamente sobre a soberania, na visão de Bodin, nós só conversaremos na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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