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26/03/2019


Sobre Jean Bodin (IV)

Na semana passada, eu prometi fazer um balanço sobre Jean Bodin (1530-1596), como homem e como pensador. Cumpro agora, dizendo, desde logo, que minha análise sobre Bodin é deveras positiva.
É verdade, e eu não nego, que a sua “Demonomania dos feiticeiros” (“De la demonomanie des sorciers”, de 1580), nos mostra um homem impregnado de concepções místicas. Suas menções a demônios, a bruxas e aos procedimentos para os julgamentos destas deram a Bodin uma fama de homem impiedoso. Mas esse misticismo misturado a um certo fervor religioso é uma característica da época, presente, aliás, em quase todos os grandes espíritos do seu tempo. E, por outro lado, o seu manuscrito “Colóquio entre sete sábios de diferentes sentimentos acerca dos segredos das coisas sublimes” (“Colloquium heptaplomeres: des secrets cachez des choses sublimes entre sept sçavans qui sont de differens sentimens”, de 1593), que narra diálogos/discussões entre um filósofo naturalista, um católico, um luterano, um calvinista, um judeu, um muçulmano e um cético, é frequentemente tido como um dos precursores da tolerância religiosa no mundo ocidental.
Há ainda outros aspectos da vida e dos escritos de Jean Bodin, pouco explorados, que refletem sua empatia para com o ser humano. Bodin, em seus “Les six livres de la République” (1576), por exemplo, se contrapõe à equivocada tese de Aristóteles de que o caráter universal e permanente do instituto da escravidão seria prova de que existiriam povos e homens naturalmente a ela vocacionados. Bodin argumenta, com razão, que a existência de certo fenômeno, mesmo que perene, não é prova de que ele se dá por vontade de Deus; caso contrário, toda e qualquer impiedade, desde que permanente, poderia ser atribuída à vontade Dele. Para Bodin, nem mesmo um suposto direito de guerra justificaria a escravidão. Prisioneiros não são animais. A partir de exemplos do passado (da Antiguidade Clássica e mais recentes), de crueldades e revoltas, Bodin se opunha à escravidão e, mais ainda, depois de abolida (na Europa, por volta do século XIII), à sua reintrodução no mundo de então. Ele critica especialmente a expansão colonial portuguesa (mas não somente ela), que espalhou o tráfico de africanos pelo Novo Mundo, a partir da ambição de mercadores, de traficantes e de outros interessados. Para ele, somente um poder monárquico forte, absoluto, poderia dar um fim a essa indesejável empreitada. Sem dúvida, com esse Bodin, eu simpatizo deveras.
E mesmo em relação à soberania e ao absolutismo, Bodin não foi tão “despótico” assim. Lembremos, como o faz Paulo Jorge Lima em seu “Dicionário de filosofia do direito” (Editora Sugestões Literárias, 1968), que ele admitia que certos direitos dos cidadãos “fossem invioláveis mesmo ante o poder do rei, porque situados no âmbito do direito natural”. O monarca que os viola “transforma-se em tirano, a quem não é mais devida obediência”. Aqui Bodin também me representa.
Apesar das limitações de sua época, é preciso também reconhecer o espírito marcadamente científico de Bodin, que supera em muito o de Maquiavel (1469-1527) e daqueles que buscaram nos evangelhos a explicação e a solução para os problemas políticos de então. É preciso reconhecer a vasta cultura de Bodin em quase todos os ramos do saber. Como aponta Cabral de Moncada em sua “Filosofia do Direito e do Estado” (vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), enquanto Maquiavel – realmente é impossível não sucumbir à tentação de comparar os dois – era um pensador “avesso a especulações teóricas, Bodin, pelo contrário, devido a sua educação humanista, jurídica e teológica, representava o tipo oposto do ‘pensador abstrato’ e era, antes de tudo, um teórico”. Maquiavel partia das “necessidades práticas da vida” para construir suas ideias; Bodin, sem perder de vista essas necessidades, partia do direito, de viés naturalista, para formatar sua visão do Estado. De fato, Bodin teve uma carreira no serviço público que, embora não excepcional, lhe deu um bom conhecimento da política francesa. Entretanto, sem dúvida, como anota Jean Touchard em sua “Historia de las ideas políticas” (Editoral Tecnos, 2013), ele deve bem mais o seu saber “às suas vastíssimas leituras, à sua curiosidade universal. Bodin, que lê o hebraico e as línguas clássicas, se interessa por todos os fenômenos sociais. É jurista, historiador, economista (a famosa ‘Réponse au paradoxe de M. de Malestroict’ é de 1568) e também filósofo. Não chegou a publicar seu pouco ortodoxo ‘Heptaplomeres colloquium’ [uma utopia social e religiosa, antes de qualquer coisa], no qual se percebe já o seu ‘esprit fort’. Sua ‘Demonomanie des sorciers’ (1580) nos mostra um homem impregnado de concepções mágicas, à semelhança dos grandes espíritos de seu tempo. A cultura de Bodin tem as dimensões e a ambição enciclopédica do humanismo do Renascimento. Sua ambição intelectual, quando compõe os ‘Les six livres de la République’ (1576), está à altura de sua erudição; trata de fundar a ciência política e traçar, ao mesmo tempo, as vias para o endireitamento da França”.
Humanista, historiador, jurista, filósofo e teólogo (com deslizes calvinistas huguenotes), Bodin formatou uma política absolutista, no interesse da unidade e da grandeza do seu Estado francês, que, antes de mais nada, mostrou ser a real e urgente necessidade do momento histórico. Talvez esteja aí, na coincidência da política certa para o momento certo, a razão da enorme influência das suas ideias.
Mas a doutrina da soberania absolutista de Bodin foi também e sobretudo (posso até dizer) um salto para o futuro. E é isso o que nós veremos, finalmente, na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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