OS MORTOS NÃO SÃO ESTRANGEIROS
Valério Mesquita*
A vida nunca é longa
demais. Dou-me conta de que os mortos vivem mais em nós do que os vivos. É essa
a impressão que me fica. No dia de finados revisitei a casa dos meus pais em
Macaíba. O jardim pareceu-me rejuvenescido. As roseiras infundiam um viço turbador
como se quisesse me convencer que a sua antiga pastora estava li. O velho
“dedal de ouro” explodia o seu amarelo vivo. As “espirradeiras” floriam
festivamente acompanhadas das “onze horas”, do “boa noite”. O jasmineiro, ao
portão, recordava as idas e as vindas de dona Nair e se ofereciam em buquet como
dantes. O jardim, afinal, permanecia o mesmo numa suave e terna liturgia de
saudade.
Dentro da casa, os
objetos inanimados confundiam-me. Passavam-me a impressão desesperada de que
ali ainda morava a vida, com vozes,
cuidados, espanadores, vassouras. O óleo de peroba ainda não enxugara de todo.
Tudo estava em seu lugar. Nada havia sido mexido. A cadeira de dona Nair, a
mesa grande da copa, os sofás das conversas políticas, o alpendre - passarela
dos notáveis e mendigos - tudo era ressurreição de ambiente. Os quartos, as
salas, a cozinha, nada se modificara nem depois do velho Mesquita nem depois de
dona Nair. Dali, fui rever a minha biblioteca. Revirei livros e selecionei
alguns. Detive-me nos quadros, passagens da vida, momentos felizes, tudo tão
fugaz mas sempre verdadeiro. Lágrimas furtivas regaram alguns instantes
pontuais de profundidade vital.
Dia desse, fazia com a minha
irmã Nídia um “levantamento” dos bens materiais deixados pelos nossos pais,
após longa atividade política. Não tivemos nenhum trabalho. Todo espólio se
resumiu na velha residência da rua Francisco da Cruz nº 39, centro. Graças a
Deus. Tal declaração, em vez de nos envergonhar, muito nos orgulha. Hoje, lá
funciona a Casa da Cultura de Macaíba. A conclusão foi cômica para não dizer
trágica: a família ficaria em Macaíba sem nenhuma referência física. Resta,
apenas, para o repouso eterno, o túmulo do cemitério São Miguel. Mas, a nós,
filhos de Alfredo Mesquita Filho e Nair de Andrade Mesquita, basta-nos o legado
de honradez e amor telúrico.
Acompanhado dos meus
filhos Isabelle, Rodolfo e Rammon, para a visita protocolar do dia de finados, retomei
o fio da meada das minhas relembranças. Eles não chegaram a conhecer o avô. Apenas,
a avó. Após caminharem comigo pelos compartimentos da casa, fomos fazer a
visita ao túmulo. Procuro transmitir aos filhos a memória dos antepassados. Sim, os nossos mortos não são estrangeiros.
Não se extinguem pela ausência física. Eles vivem em nós porque o passado não
morre como querem alguns. Saí de Macaíba em paz comigo mesmo. Contemplei os
filhos e refleti que eles são frutos do tempo. Afinal, o tempo é obra de Deus.
(*) Escritor.
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