A ficção jurídica (I)
Mestre em Direito pela PUC/SP
Como já disse aqui certa vez, a questão do gênero ou da tipologia na
literatura ficcional é bastante controversa: antes de mais nada, as
grandes obras-primas normalmente não se conformam às regras
convencionadas; e muitos críticos literários sequer reconhecem a
existência desse conceito (de gênero da literatura ficcional).
Essa atitude – de aversão à classificação da literatura ficcional – tem
uma explicação histórica. Segundo registra Tzvetan Todorov (1939-2017),
em “Poética da Prosa” (Editora Martins Fontes, 2003), “a reflexão
literária da época clássica, que se dedicava mais aos gêneros que às
obras, também manifestava uma tendência punitiva: a obra era julgada
ruim se não obedecesse de modo suficiente às regras do gênero. Portanto,
essa crítica procurava não só descrever os gêneros mas também
prescrevê-los; a classificação dos gêneros precedia a criação literária
em vez de vir depois dela”. E, dos românticos e de seus descendentes, a
reação para com isso foi radical: estes “recusaram-se não só a se
conformar às regras dos gêneros (o que era seu direito), mas também a
reconhecer a própria existência dessa noção. Por isso a teoria dos
gêneros continua singularmente pouco desenvolvida até hoje”.
Para além dessa reação/preconceito, é também fato que as grandes obras
da literatura muito frequentemente refogem a uma classificação dentro de
um gênero literário, a não ser em seu próprio. Como anota o mesmo
Todorov, “a grande obra de certa forma cria um novo gênero, e ao mesmo
tempo transgride as regras do gênero válidas até então”. E ele dá como
exemplo disso a “Cartuxa de Parma” (1841), cujo gênero de seu
pertencimento não seria o do “romance francês do começo do século XIX”,
mas, sim, o do “romance stendhaliano”, assim criado por essa obra-prima
de Henri-Marie Beyle, dito Stendhal (1783-842) e por outros romances de
semelhantes contornos.
Mas embora essa seja uma atitude muito
difundida – que, por honestidade intelectual, fui obrigado a citar aqui
–, acho que podemos adotar uma posição diferente. Aliás, penso que
atualmente existe até uma tendência em encontrar critérios seguros para,
mesmo dentro de uma noção mais geral de literatura, classificar boa
parte da prosa ficção em gêneros mais ou menos definidos: histórias de
amor, histórias detetivescas, histórias de terror, romances históricos,
“roman à thèse”, romances regionais, faroestes, ficção científica e por
aí vai.
Por que não termos o gênero/categoria da “ficção
jurídica”, no qual estariam inseridas obras-primas como “O mercador de
Veneza” (1597), de William Shakespeare (1564-1616), “A casa soturna”
(1853), de Charles Dickens (1812-1870) ou “Crime e Castigo” (1866), de
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)?
Mesmo que eu reconheça a
dificuldade de comparar e agrupar livros escritos em formatos/estilos
diferentes, em circunstâncias culturais distintas e com intenções
bastante diversas, acho que podemos nos contentar, para os fins dessa
categorização – de romances, novelas, contos ou peças de teatro como
“ficção jurídica” –, com alguns bons elementos/critérios que podemos
encontrar e medir nessas obras.
Adianto, desde já, alguns desses
elementos (prometendo desenvolver o tema, com muitos exemplos de
títulos de ficção jurídica, nos artigos das semanas vindouras). Antes de
mais nada, embora tenhamos exemplos de obras cuja classificação é
controversa ou que podem ser classificadas em mais de um gênero ou
subgênero, acho que podemos classificar como ficção jurídica os
romances, as novelas, os contos ou as peças de teatro cujos enredos
tenham considerável ligação com o direito. Por exemplo, um subtipo muito
característico dessa ficção (jurídica), bastante difundido nos Estados
Unidos da América e no Reino Unido, são os “courtroom novels”, nos quais
boa parte da estória se passa perante um aparelho de judicial em pleno
funcionamento, com advogados, promotores e juízes realizando suas
performances jurídicas. Outro subtipo, bastante comum também, envolve um
pano de fundo filosófico, em que há uma tensão entre a falibilidade do
sistema (ou da “justiça humana”) e a noção, com forte apelo no direito
natural, do que é a verdadeira Justiça. Há, também, os “legal novels” de
vieses históricos, baseados ou inspirados em acontecimentos reais ou
mesmo em grandes eventos da história. E existem também livros que são
essencialmente estórias de suspense ou mesmo “thrillers” jurídicos. No
mais, de um ponto em diante, as coisas variam bastante: os enredos podem
focar o réu, a vítima, o advogado brilhante, o promotor que busca
incessantemente a Justiça, o juiz “justo”, o controverso instituto do
júri, a defesa do meio ambiente, a corrupção ou opressão do Estado e por
aí vai. Para falar a verdade, até mesmo uma obra de ficção policial ou
detetivesca pode ser, em muitos casos, também classificada como ficção
jurídica, pela concomitante presença de elementos desta última
categoria.
Bom, o fato é que, pessoalmente, adoro conceitos,
definições e classificações. Sou um conceptualista no direito, à moda da
escola analítica anglo-saxã, talvez melhor representada, na história da
ciência jurídica, por H. L. A. Hart (1907-1992). Mesmo quando não
inteiramente precisas, as classificações, acredito, ajudam muito na
compreensão das coisas.
E se acredito piamente na existência e na
conveniência de uma ficção a ser classificada como “jurídica”, eu não
estou sozinho nisso. Podem ter certeza.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCLMestre em Direito pela PUC/SP
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