A ficção jurídica (III)
Como registrado aqui nas duas últimas semanas, a literatura ficcional
tem tomado emprestado do direito muitos dos seus temas, das suas
personagens e da sua dramaticidade. Há uma infinidade de temas jurídicos
de que ela faz uso: justiça, sistema judicial, prisões, crimes não
explicados, homicídios, sequestros, fraudes, corrupção, heranças
contestadas, disputas por terras e por aí vai. Há as personagens –
policiais, advogados, promotores, juízes, partes, criminosos e
testemunhas – em torno das quais pode sempre girar uma boa estória. E,
por fim, há a dramaticidade que o mundo do direito, sobretudo aquilo que
se passa teatralmente em um tribunal, pode emprestar à ficção.
Naturalmente, é impossível listar aqui todas as obras literárias que
podem ser classificadas como “ficção jurídica”. Sendo uma das relações
mais fecundas para a arte ocidental – essa da literatura com o direito
–, a variedade nessas obras assim potencialmente classificadas, escritas
com diferentes intenções e em circunstâncias culturais diversas, é
simplesmente enorme. E o número delas, que cresce a cada dia, desde a
Bíblia contando o caso de Caim e Abel até os romances mais
contemporâneos de gente como Scott Turow (1949-) ou John Grisham
(1955-), é quase infinito.
Mas há muitas tentativas de
direcionar – e, por consequência, otimizar – a leitura dessa ficção
jurídica, promovendo livros, frequentemente obras-primas da literatura
universal, que possam ser agradáveis e úteis para o operador do direito.
Eu mesmo tenho aqui, vez por outra, escrito sobre autores e obras da
literatura relacionadas ao direito, quase fazendo o papel daquilo que
não sou: um crítico literário. De cabeça, recordo-me de ter escrito
sobre autores – e, em especial, sobre suas ficções jurídicas – como
William Shakespeare (1564-1616), Christopher Marlowe (1564-1593), Victor
Hugo (1802-1885), Benjamin Disraeli (1804-1881), Edgar Allan Poe
(1809-1849), William Thackeray (1811-1863), Charles Dickens (1812-1870),
Wilkie Collins (1824-1889), Émile Zola (1840-1902), Guy de Maupassant
(1850-1893), Liev Tolstoi (1824-1910), Thomas Hardy (1840-1928), Robert
Louis Stevenson (1850-1894), Oscar Wilde (1854-1900), Arthur Conan Doyle
(1859-1930), G. K. Chesterton (1874-1936), George Orwell (1903-1950),
Raymond Chandler (1888-1959), Dashiell Hammett (1894-1961), Erle Stanley
Gardner (1887-1970), Georges Simenon (1903-1989), Graham Greene
(1904-1991), Ian Fleming (1908-1964), Harper Lee (1926-2016), P. D.
James (1920-2014), Colin Dexter (1930-2017), Gore Vidal (1925-2012),
Umberto Eco (1932-2016), John Le Carré (1931-), Susan Hill (1942-),
Hilary Mantel (1952-), John Grisham (1955-), Jo Nesbo (1960-) e tantos
outros mais. Todos esses grandes escritores, em menor ou maior grau,
escreveram sobre o direito nas suas literaturas. Pelo menos foi o que eu
procurei mostrar aqui em muitas de minhas crônicas, boa parte delas
compiladas na trilogia “Ensaios ingleses” (2011), “Retratos ingleses”
(2012) e “Códigos ingleses” (2013), para a qual vos remeto, caro leitor,
se você não quiser ter o trabalho de procurar por meus textos
diretamente no sítio da Tribuna do Norte.
Existem, claro, as
listas de obras de “ficção jurídica”. Afinal, adoramos elas – as tais
“listas” –, hoje talvez mais que nunca.
Uma delas, que achei
bem objetiva e interessante, já que mostra temática, obra e autor, foi
produzida por André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto
“Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o
direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões
teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), embora
reconhecendo os próprios autores a impossibilidade de qualquer
completude. Eis a dita cuja: “Os exemplos, contudo, são intermináveis: a
negociação da lei e a metáfora da aliança ou do contrato social (Êxodo,
do Antigo Testamento), o problema da legitimidade do direito (Antígona,
de Sófocles), a relação entre vingança e justiça (Oréstia, de Ésquilo),
a secularização frente aos critérios morais de classificação dos crimes
e punições que lhes são correspondentes (A divina comédia, de
Alighieri), a obrigatoriedade de aplicação da lei penal (Medida por
medida, de Shakespeare), o problema da interpretação jurídica (O
mercador de Veneza, de Shakespeare), a busca de uma justiça idealizada e
as adversidades inerentes à realidade (Dom Quixote de la Mancha, de
Cervantes), o indivíduo e a fonte de direitos a ele inerente (Robinson
Crusoé, de Defoe, e Fausto, de Goethe), as falácias da argumentação
jurídica (As viagens de Gulliver, de Swift), as implicações da anistia
(O leitor, de Schlink), os efeitos perversos que subjazem nas leis mais
bem-intencionadas (O contrato de casamento e A interdição, de Balzac), a
complexidade psicológica da culpa (Crime e castigo, de Dostoievski), as
descobertas e os avanços da criminologia (A ressurreição, de Tolsoi), a
incoerência das formas e conteúdos que o sistema jurídico estabelece (O
processo, de Kafka), o processo de submissão dos indivíduos a partir do
controle social exercido pelo regime totalitário (1984, de Orwell, e
Admirável mundo novo, de Huxley), o absurdo do desprezo legal pela
singularidade e subjetividade (O estrangeiro, de Camus), a Lei como
instrumento de interdição (O senhor das moscas, de Golding), a questão
do adultério e da construção da verdade (Dom Casmurro, de Machado de
Assis), a loucura e o tratamento jurídico a ela dispensado (O alienista,
de Machado de Assis), os dilemas da democracia e o papel do Estado
(Ensaio sobre a lucidez, de Saramago), o caos e a barbárie num mundo sem
direito (Ensaio sobre a cegueira, de Saramago), o controle social e o
poder ideológico exercido pelas ditaduras (A festa do bode, de Llosa), a
decadência dos valores e seus reflexos na ordem jurídica (O homem sem
qualidades, de Musil), a necessidade de humanização do sistema penal (Os
miseráveis, de Victor Hugo), os dilemas do casamento frente aos
interesses hereditários (Orgulho e preconceito, de Austen), o problema
das presunções normativas (Oliwer Twist, de Dickens), entre outros
tantos”.
E há a mais famosa dessas listas, elaborada por John
Henry Wigmore (1863-1943) já no distante ano de 1900 (e, sucessivamente,
em 1908 e 1922, pelo menos), sob o título “A List of Legal Novels”, que
é considerada o pontapé inicial daquilo que estamos fazendo aqui,
misturando “direito e literatura”, mais especificamente falando do
“direito na literatura”.
Bom, mas sobre Wigmore e sua lista,
remeto vocês aos meus artigos “O precursor” e “A lista”. Primeiro, para
não repetir tudo aqui. E, segundo, para fazer mais alguma propaganda dos
meus riscados.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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