Da literatura para o direito
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Já faz algum tempo, nos textos “O direito através da literatura: vale a
pena?” (I) e (II), eu relacionei aqui vários motivos para se estudar o
direito por intermédio da literatura (ficcional), prática pedagógica
que, embora bastante desenvolvida em universidades, programas, cursos e
instituições de pesquisa europeus e estadunidenses, ainda não é tão
comum entre nós, brasileiros, academicamente ou não, apesar das
reconhecidas empreitadas dos últimos tempos.
Apresentei,
recordo-me bem, no que parecia uma conta de mentiroso, sete razões para
esse estudo interdisciplinar. E tirei, na ocasião, uma carta de seguro,
deixando claro não ser aquela minha relação uma lista exaustiva ou, como
se diria em latim, de “numerus clausus”.
Volto aqui ao tema
com mais duas razões em prol da utilidade da literatura ficcional para o
desenvolvimento do direito, agora, em parte, com base num texto de
André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert – “Direito e literatura:
aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte
do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela
Livraria do Advogado Editora em 2008 –, que andei de novo xeretando por
estes dias. De toda sorte, os citados autores são bem mais teóricos do
que eu, até porque considero a minha conta de sete razões bastante
objetiva e prática para qualquer curioso da temática.
Primeiramente, os referidos autores falam de uma “dimensão criadora e
crítica da literatura” que em muito ajudaria ao direito. Segundo eles, a
obra literária, ao contrário da produção jurídica, “é uma obra de arte,
na medida em que se caracteriza pela maravilha do enigma e por sua
inquietante estranheza, que são capazes de suspender as evidências,
afastar aquilo que é dado, dissolver as certezas e romper com as
convenções. A obra de arte produz, mediante a imaginação, um
deslocamento no olhar, cuja maior virtude está na ampliação e fusão dos
horizontes, de modo que tudo se passa como se, através dela, o real
possibilitasse o surgimento de mundos e situações até então não
pensados”. Na verdade, se a ciência jurídica é técnica (ou mesmo
“grosseira”, como dizem os autores), a vida é sutil, cheia de nuances; e
a literatura serve para fazer uma ponte, usando da imaginação, entre a
técnica e a vida como ela é. Em outras palavras, a literatura é um
veículo para a criatividade no direito, ampliando os horizontes dos
juristas e permitindo-lhes, assim, alcançar soluções que não enxergariam
se presos aos limites da ciência jurídica propriamente dita.
Mas não é só criatividade que a literatura nos oferece. A literatura é,
também, para o direito, subversiva e crítica, na medida em que é uma
forma bastante diferenciada de reflexão filosófica – bem diferente da
filosofia, sociologia, antropologia, psicologia ou economia jurídicas
propriamente ditas –, cuidando com extrema liberdade dos problemas
jurídicos mais importantes para a história do direito e mais
preeminentes para a vida do cidadão comum. Nesse sentido, André Karam
Trindade e Roberta Magalhães Gubert reiteram, referindo-se à professora
portuguesa Joana Aguiar e Silva, que “a literatura constitui um ágio
para os juristas, na medida em que lhes possibilita a perspectiva de
mundos que são alternativos àquele tradicional, permitindo-lhes
experimentar – de modo seguro – a complexidade da vida mediante a
participação nas escolhas, decisões e submissões de personagens que, na
verdade, são autênticas provocações”. E, sendo assim, independentemente
de outros resultados, “a literatura torna os leitores pessoas mais
críticas, o que é fundamental à prática do direito”.
Para além
da sua “dimensão criadora e crítica”, um outro elemento fundamental da
literatura milita em prol do direito: o (bom) uso de uma dada linguagem.
Sem dúvida, embora trabalhem em condições distintas, um elemento
fundamental une a literatura e o direito: a onipresença de uma linguagem
(e a sua necessária interpretação) como principal instrumento para que
elas atinjam os seus fins.
Como sabemos, é inegável a
importância que a linguagem tem para as filosofias do século passado e
do atual, inclusive para a análise e a compreensão dos fenômenos
jurídicos, uma vez que o direito é, em grandíssima parte, repita-se,
linguagem. Sendo o direito linguagem (ou atividade discursiva, como
preferem alguns), seu estudo mais aprofundado implica atentar para os
recentes desenvolvimentos desse ramo da filosofia (o da linguagem) e da
teoria literária. Assim, do ponto de vista da linguagem e da sua
interpretação, as contribuições que a literatura e os estudos literários
podem oferecer ao direito são mais que evidentes. Há, sem dúvida, um
patrimônio de conhecimento alcançado pela literatura e pela teoria
literária, no que toca ao domínio da linguagem, em termos de extensão e
de intensidade, que está bem além do que alcançou o direito, até agora,
nessa seara.
Entre outras coisas, de modo bastante concreto, a
partir do conhecimento e do estudo da literatura, há um enorme potencial
de melhora do discurso jurídico, afastando-se do malfalado “juridiquês”
em direção a um discurso mais próximo da linguagem cotidiana. Sem
dúvida, adquirir hábitos da leitura e refletir sobre as narrativas
literárias pode ajudar decisivamente para que o jurista opere com uma
linguagem bem próxima do ideal comunicativo. Na verdade, se não por
outros motivos, o estudo do direito através da literatura, nas suas mais
diversas modalidades, deve também ser incentivado porque ele possui um
grande potencial didático e formativo. Se não é razoável exigir dos
calouros de direito que cheguem à universidade já minimamente
familiarizados com o Código Civil, o Código Penal ou mesmo com a
Constituição Federal, seria muito bom se eles, ainda no ensino médio, já
tivessem tido contato – quiçá lido e estudado – as obras-primas da
literatura universal. Isso poderia fazer a diferença no aprendizado do
direito pelos nossos futuros juristas, tanto em termos de criatividade e
capacidade crítica, como quanto ao uso adequado da tão necessária
linguagem jurídica.
Isso se quisermos – como é o desejo de André
Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e deste que vos escreve –
realmente formar juristas, em vez de meros burocratas do direito.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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