A escola da exegese
Corrente de pensamento, no direito, tem para todos os gostos.
Embora hoje fora de moda, uma das mais famosas e curiosas dessas
correntes restou conhecida como a “escola da exegese”, que despontou na
França, na primeira metade do século XIX, fruto do surgimento do Código
de Napoleão (de 1804). Basicamente, para a escola da exegese, a lei
escrita – e, mais restritivamente, o Código –, emanada da vontade do
legislador, representava, formal e materialmente, a única fonte do
direito. O jurista deveria pesquisar e interpretar o direito tão-somente
focado nas regras preconizadas pelo Código, que seria um todo perfeito,
completamente articulado, coerente e sem lacunas.
Os exegetas, por conseguinte, negavam aos juízes a possibilidade de
recorrerem a outras fontes, como os costumes e os precedentes judiciais,
na busca de soluções para os casos concretos. Essa não era uma ideia
nova, claro. Na França mesmo, Montesquieu (1689-1755) já havia defendido
que o juiz não deve ser outra coisa senão a boca que pronuncia as
palavras da lei (“la bouche de la loi”). Mas, com os exegetas e o Código
Civil – e os outros códigos que se seguiram na França de Napoleão, o de
Processual Civil (1806), o Comercial (1807), o de Processual Penal
(1808) e o Penal (1810) –, a ideia pegou.
Além disso, como anota Antonio Padoa Schioppa (em “História do
direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF
Martins Fontes, 2014), na França, por muitos anos, “os juristas
consideravam sua tarefa essencial, se não até exclusiva, a de aprofundar
analiticamente o exame da disciplina normativa dos códigos, sem se
aventurar fora deles com considerações de teoria geral ou de iure
condendo”. A doutrina “desenvolveu-se especialmente sobre o Código
Civil, que também no ensino universitário predominava claramente sobre
qualquer outra fonte, mesmo coexistindo com os cursos de direito
público, de direito romano e de direito penal”. De fato, os cursos
universitários de direito focavam na “interpretação das normas dos
códigos e das leis, recebendo uma denominação referente a elas (‘Curso
de Código Civil’) e não à disciplina ensinada”. Reza a tradição (embora
sem prova consistente nesse sentido) que o jurista Jean-Joseph Bugnet
(1794-1866) chegou a afirmar orgulhosamente: “eu não conheço direito
civil, eu ensino o Código de Napoleão”. E diz-se também que o próprio
Napoleão Bonaparte (1769-1821), ao saber que um professor se “atrevia” a
comentar com uma maior liberdade o seu Código, afirmou: “meu Código
está perdido”.
Entre os principais nomes da escola da exegese, além do já referido
Bugnet, achavam-se, entre outros: Raymond-Théodore Troplong (1795-1869),
jurista autodidata (segundo reza a lenda) que escreveu inúmeros
tratados sobre as matérias do Código Civil (obrigações, contratos,
direito das coisas, família, sucessões e por aí vai) e que, após
ingressar na magistratura, chegou, durante o segundo império, de 1852 a
1869, exercer a presidência da “Cour de Cassation” francesa (que
corresponde ao Tribunal Supremo para os fins da Justiça Comum francesa);
Charles Demolombe (1804-1887), estudante em Paris, advogado e professor
em Caen (na Normandia), que, a partir de 1845 até a sua morte, publicou
um “Cours de Code de Napoléon”, composto de pelo menos 31 volumes, de
muito sucesso; Charles Aubry (1803-1883) e Frédéric-Charles Rau
(1803-1877), juristas alsacianos e professores em Estrasburgo, mais
tarde magistrados da “Cour de Cassation” francesa, que, a partir do
projeto inicial de tradução do trabalho do professor alemão (de
Heidelberg) Karl Zachariae (1769-1843), elaboraram um tratado de direito
civil que muitos consideram revolucionário e o melhor fruto da escola
exegética francesa.
No mais, como lembra Paulo Jorge Lima (no “Dicionário de filosofia
do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), o
pensamento da escola da exegese, “apesar da forçada imobilidade a que
submeteu o direito francês, divorciando-o da realidade social, perdurou
durante grande parte do século XIX e sua influência se faz sentir ainda
hoje”.
Entretanto, evidentemente, essa ideia de culto exacerbado à letra da
lei, entre outras coisas pelo seu extremismo, está equivocada. E mesmo
na França, onde se considera estar o seu berço, foi ela, com o tempo,
rechaçada, merecendo, de François Geny (1861-1959), por exemplo, em
1899, famosa e combativa obra: “Méthode d‘interprétation et sources en
droit privé positif: essai critique”.
De toda sorte, sem dúvida, a escola da exegese tem seu lugar na história.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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