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03/03/2017


   
Marcelo Alves

A escola da exegese

Corrente de pensamento, no direito, tem para todos os gostos. 

Embora hoje fora de moda, uma das mais famosas e curiosas dessas correntes restou conhecida como a “escola da exegese”, que despontou na França, na primeira metade do século XIX, fruto do surgimento do Código de Napoleão (de 1804). Basicamente, para a escola da exegese, a lei escrita – e, mais restritivamente, o Código –, emanada da vontade do legislador, representava, formal e materialmente, a única fonte do direito. O jurista deveria pesquisar e interpretar o direito tão-somente focado nas regras preconizadas pelo Código, que seria um todo perfeito, completamente articulado, coerente e sem lacunas. 

Os exegetas, por conseguinte, negavam aos juízes a possibilidade de recorrerem a outras fontes, como os costumes e os precedentes judiciais, na busca de soluções para os casos concretos. Essa não era uma ideia nova, claro. Na França mesmo, Montesquieu (1689-1755) já havia defendido que o juiz não deve ser outra coisa senão a boca que pronuncia as palavras da lei (“la bouche de la loi”). Mas, com os exegetas e o Código Civil – e os outros códigos que se seguiram na França de Napoleão, o de Processual Civil (1806), o Comercial (1807), o de Processual Penal (1808) e o Penal (1810) –, a ideia pegou. 

Além disso, como anota Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014), na França, por muitos anos, “os juristas consideravam sua tarefa essencial, se não até exclusiva, a de aprofundar analiticamente o exame da disciplina normativa dos códigos, sem se aventurar fora deles com considerações de teoria geral ou de iure condendo”. A doutrina “desenvolveu-se especialmente sobre o Código Civil, que também no ensino universitário predominava claramente sobre qualquer outra fonte, mesmo coexistindo com os cursos de direito público, de direito romano e de direito penal”. De fato, os cursos universitários de direito focavam na “interpretação das normas dos códigos e das leis, recebendo uma denominação referente a elas (‘Curso de Código Civil’) e não à disciplina ensinada”. Reza a tradição (embora sem prova consistente nesse sentido) que o jurista Jean-Joseph Bugnet (1794-1866) chegou a afirmar orgulhosamente: “eu não conheço direito civil, eu ensino o Código de Napoleão”. E diz-se também que o próprio Napoleão Bonaparte (1769-1821), ao saber que um professor se “atrevia” a comentar com uma maior liberdade o seu Código, afirmou: “meu Código está perdido”. 

Entre os principais nomes da escola da exegese, além do já referido Bugnet, achavam-se, entre outros: Raymond-Théodore Troplong (1795-1869), jurista autodidata (segundo reza a lenda) que escreveu inúmeros tratados sobre as matérias do Código Civil (obrigações, contratos, direito das coisas, família, sucessões e por aí vai) e que, após ingressar na magistratura, chegou, durante o segundo império, de 1852 a 1869, exercer a presidência da “Cour de Cassation” francesa (que corresponde ao Tribunal Supremo para os fins da Justiça Comum francesa); Charles Demolombe (1804-1887), estudante em Paris, advogado e professor em Caen (na Normandia), que, a partir de 1845 até a sua morte, publicou um “Cours de Code de Napoléon”, composto de pelo menos 31 volumes, de muito sucesso; Charles Aubry (1803-1883) e Frédéric-Charles Rau (1803-1877), juristas alsacianos e professores em Estrasburgo, mais tarde magistrados da “Cour de Cassation” francesa, que, a partir do projeto inicial de tradução do trabalho do professor alemão (de Heidelberg) Karl Zachariae (1769-1843), elaboraram um tratado de direito civil que muitos consideram revolucionário e o melhor fruto da escola exegética francesa. 

No mais, como lembra Paulo Jorge Lima (no “Dicionário de filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), o pensamento da escola da exegese, “apesar da forçada imobilidade a que submeteu o direito francês, divorciando-o da realidade social, perdurou durante grande parte do século XIX e sua influência se faz sentir ainda hoje”. 

Entretanto, evidentemente, essa ideia de culto exacerbado à letra da lei, entre outras coisas pelo seu extremismo, está equivocada. E mesmo na França, onde se considera estar o seu berço, foi ela, com o tempo, rechaçada, merecendo, de François Geny (1861-1959), por exemplo, em 1899, famosa e combativa obra: “Méthode d‘interprétation et sources en droit privé positif: essai critique”. 

De toda sorte, sem dúvida, a escola da exegese tem seu lugar na história. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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