Valério
Mesquita*
01) As acontecências da política e do folclore humano
de Macaíba são como uma vertente inesgotável. Quanto mais são narradas mais
brotam facilmente de outros mananciais. Almoçava certa vez com Aldo da Fonseca
Tinôco quando me narrou a estória do Xenovis que já ouvira falar antes, mas sem
retê-la completamente na memória. Aldo iniciou a sua vida publica praticamente
em Macaíba com Alfredo Mesquita, ao lado de José Maciel, Aguinaldo Ferreira e
tantos outros. No auge do seu prestígio político, contou-me Aldo, Mesquita era
consultado por todos e se constituía na palavra final e segura para qualquer
assunto. O Xenovis era um livro antigo, volumoso e grande sobre práticas de
medicina em geral, revestido de uma capa circunspecta que parecia imprimir
respeito e obediência a quem o manuseasse. De uma feita, Seu Mesquita foi procurado
por um compadre cuja filha havia sido deflorada e o autor, bem mais jovem,
estava se recusando terminantemente a casar. Seu Mesquita mandou chamar a sua
casa o jovem e o seu pai. Após, baldados os esforços persuasórios preliminares,
mais uma vez, o jeito foi recorrer o velho Xenovis. Em pé, calvo, óculos de grau
no meio do nariz, fisionomia severa e preocupada, Seu Mesquita passava as
páginas do livro como se procurasse algo escrito que iria resolver o problema,
sob os olhares tensos e atentos dos circunstantes. “Achei”, disse, fitando
grave e calmamente o rapaz. “Para esses casos de defloramento e recusa de
casamento a pena é de dois anos e meio de cadeia!”. O rapaz, completamente
amedrontado e aturdido pelo anúncio, exclamou: “Seu Mesquita, a mulher tem 28
anos. Não dá pra fazer por menos não?”.
02) O tenente PM, Pedro Joaquim da Costa, maçom, “dinartista
do pé roxo”, como gostava de se autoproclamar, foi delegado em Macaíba nos idos
de 1970. Ao chegar com a família de Santa Cruz, trazia consigo uma cachorrinha
de estimação chamada Kelly. Era o tempo do MDB x ARENA. A política do Rio
Grande do Norte vivia mais um período tenso e intenso do seu radicalismo.
Naquela época, era meu ferrenho adversário político em Macaíba o deputado
Magnus Kelly. A rede de fofoca, em alta voltagem, impulsionada pelos vis novidadeiros,
não demorou em comunicar ao deputado que o delegado politiqueiro colocou o seu
sobrenome na cadelinha. O mundo deu um tombo. Magnus levou o assunto para o
rádio, para a Tribuna do Norte e para os comícios. Por mais que explicasse o
equívoco, o tenente Pedro não convencia. O problema foi parar na maçonaria que
decidiu que Kely não era Kelly, porque um era cão e o outro era homem e tinha
um L a mais. E ademais, ainda havia os pneus Kelly. Terminou tudo como na
comédia shakespeariana: “Muito barulho por nada”.
03) Zé Buchudo era um comerciante, proprietário de
um pequeno açougue, nos fundos do mercado. Certa feita, numa dessas manhãs
chatas da cidade, foi convidado pelo farmacêutico Manoel Guedes e patota, a
empreenderem uma viagem de circunavegação pelos bares da cidade. Guedes,
capitão de longo curso, dirigiu logo a nau dos insensatos à cidade de
Parnamirim, onde ancoraram no famoso cabaré de Tibinha. Desnecessário dizer das
abluções profundas e repetidas até a hora vespertina, quando pressentiram que o
náufrago Zé Buchudo havia mergulhado a estibordo, em abismal sono etílico.
Retornaram a Macaíba e entregaram a domicílio o invólucro corpóreo do que
restou do nosso herói. Estirado no sofá da sala, Zé Buchudo sobreviveu a todos
os exercícios de ressurreição ministrados pela esposa e filhos. Findas algumas
horas, aí então, veio a cena patética: Zé Buchudo abriu os olhos, viu de plano,
a esposa inclinada sobre si, soltou a catastrófica exclamação denunciadora:
“Mas, fia, que é que você está fazendo aqui no cabaré de Tibinha?”. Depois
dessa, Zé Buchudo era a imagem do próprio cristão trucidado.
(*)
Escritor
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