Por detrás da decisão
Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803) é certamente um dos casos mais famosos da história do direito. Nele está, segundo convencionado, a origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis – modelo americano), que assim não proveio de texto expresso da Constituição dos Estados Unidos da América, mas foi, sim, uma criação predominantemente jurisprudencial da Suprema Corte desse imenso país. Nessa famosa decisão da Suprema Corte dos EUA, o seu presidente de então, John Marshall (1755-1835), representando a unanimidade de seus membros (chamados de “Justices”), afirmou que a Constituição foi a expressão de um soberano desejo constituinte e, por conseguinte, regulava o exercício de todo poder governamental. Isso incluía tanto os atos do Executivo Federal e do Congresso Nacional como também os atos dos governos estaduais. Do contrário, os atos do Legislativo e do Executivo seriam supremos e incontroláveis, não obstante as prescrições contidas na Constituição, resultando em usurpações extremamente perigosas, sem qualquer remédio à disposição do cidadão. De acordo ainda com Marbury v. Madison, se a Constituição é suprema em relação à legislação infraconstitucional, qualquer lei que a contradiga será declarada nula e ineficaz. E é o Judiciário quem detém o poder de “invalidar” (declarar inválidos, melhor dizendo) os atos do governo contrários à Constituição, tendo a última palavra sobre a questão. Segundo a opinião de muitos, a doutrina inaugurada por Marshall em Marbury v. Madison foi a maior contribuição até hoje dada pelos EUA à ciência política do passado e dos nossos dias.
Mas isso, em regra, todo profissional e estudante do direito, desde que minimamente dedicado à coisa, sabe.
O que poucos sabem são os fatos por detrás desse famoso caso e, sobretudo, os pormenores da enrascada em que John Marshall se achava. E é isso que eu vou tentar contar para vocês aqui.
Antes de mais nada, vamos aos fatos e aos personagens (mais do que ilustres) do caso. O ano era 1800. John Adams (1735-1826), o segundo presidente dos EUA, havia acabado de perder a eleição presidencial para Thomas Jefferson (1743-1826), o terceiro Presidente americano. Adams, que era do antigo Partido Federalista (dominante, com Alexander Hamilton e a simpatia de George Washington, no comecinho da história política americana), antes do fim do seu mandato, tratou de indicar/nomear vários juízes “federalistas” para postos vagos na Justiça americana. Muitos entraram normalmente em exercício, entre eles John Marshall, também ilustre federalista, nomeado para o mais alto cargo na hierarquia judiciária do país. Outros não, como foi o caso William Marbury (1762-1835), indicado para o cargo de juiz de paz (1762-1835). Em muitos casos, como lembra Michael H. Roffer (em “The Law Book: from Hammurabi to the International Criminal Court, 250 Milestones in the History of Law”, Sterling Publishng Co., 2015), “o Senado somente aprovou as indicações de Adams no último dia do seu mandato, apenas permitindo ao Presidente assinar e encaminhar as nomeações na tarde daquele dia, o que acabou atribuindo aos juízes assim nomeados o apelido de 'juízes da meia-noite'”. As nomeações/posses de Marbury e de três outros juízes não foram finalizadas ao tempo de Adams, e Thomas Jefferson (1743-1826), fundador do antigo Partido Republicano americano (não confundir com o partido atual de mesmo nome), o terceiro Presidente dos EUA, já no exercício do cargo, se recusou a levá-las a cabo.
William Marbury (1762-1835), que não ia deixar a coisa por isso mesmo, manejou/pleiteou um “mandado de segurança” – para ser mais preciso, um “writ of mandamus”, como dizem por lá, que, se concedido, à semelhança do nosso remédio heroico, pode implicar uma ordem à autoridade pública para praticar ou deixar de praticar determinado ato – à Suprema Corte dos Estados Unidos da América, para que esta determinasse a James Madison (1751-1836), então Secretário de Estado e posteriormente o quarto Presidente dos EUA, levar a cabo a sua nomeação e posse no cargo de juiz de paz.
E é aí que, dizem, entrou John Marshall numa enrascada. Sua histórica ligação com o Partido Federalista poderia levar à suspeição (não falo tecnicamente, mas, sim, politicamente) da sua decisão, se concessiva da segurança. E o pior: podia a decisão não ser cumprida pelo Executivo, o que levaria a sua desmoralização e, sobretudo, a uma desastrosa desmoralização da própria Suprema Corte dos EUA, que, à época, ainda engatinhava em sua hoje ilustrada história.
Mas John Marshall teve uma brilhante ideia – embora alguns, de língua mais ferina, digam que ele agiu covardemente, sendo certo que pelo menos William Marbury não gostou da solução dada ao caso. Como anota o já citado Michael H. Roffer: “Anunciando a decisão unânime da Corte, Marshall anotou primeiro que Marbury tinha legalmente direito ao seu cargo. O Senado tinha confirmado a indicação; o Presidente tinha então assinado a nomeação, confirmando a indicação. Este último ato necessariamente fez de Marbury um juiz; decidir diferentemente implicaria um poder presidencial de exonerar juízes constitucionalmente independentes. Marshall (e a Corte Suprema como um todo) chegou à necessária conclusão de Marbury tinha direito a um 'remédio'. A única questão era se esse 'remédio' poderia ser dado diretamente pela Suprema Corte. A Lei do Judiciário ('The Judiciary Act') de 1789 parecia dizer que sim; mas Marshall afirmou essa lei inconstitucional; a Suprema Corte não tinha competência constitucional para funcionar como corte de primeira instância, exceto em casos envolvendo estados federados e embaixadores, e o Congresso não podia expandir a competência originária da Corte”.
Bom, certa vez disse Otto Von Bismarck (1815-1898): “Leis são como salsichas. É melhor não ver como elas são feitas”. Parece que o mesmo se dá com algumas decisões judiciais.
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