01/08/2016

   
Marcelo Alves

Sobre Pufendorf

Tendo escrito nas duas últimas semanas sobre Marco Tullio Cicero (106-43 a.C.) e sua filosofia naturalista do direito (embora muito superficialmente, reconheço), hoje vou dar um salto de alguns séculos para tratar de um outro expoente do direito natural: Samuel Pufendorf (1632-1694). 

Pufendorf nasceu em 1632 na pequena cidade de Dorfchemnit, situada no antigo Ducado da Saxônia, que hoje é um dos estados da Alemanha. Seu pai era pastor luterano, e seguir essa vocação era, num primeiro momento, o destino traçado para o pequeno Samuel. Assim, bastante jovem, Pufendorf foi estudar Teologia na Universidade de Leipzig. Mas não era esse seu destino, e Pufendorf foi logo estudar na Universidade de Jena, dedicando-se à matemática, à filosofia (Descartes, Hobbes e Grócio, especialmente) e, sobretudo, ao direito, numa formação multidisciplinar bastante comum aos mais dotados jovens germânicos de então. Terminou seus estudos em 1658. Foi trabalhar na Dinamarca como professor/tutor particular. Ali envolveu-se em escaramuças políticas e passou algum tempo preso. Libertado, assumiu uma posição na Universidade de Leiden, na Holanda. Em Lieden, escreveu “Elementa Jurisprudentiae Universalis” (1661). Assim famoso, logo ganhou os favores do eleitor do Palatinado, Carlos Luís (1617-1680), que criou, na Universidade de Heidelberg, uma cadeira especialmente para ele. Mas em 1670 caiu em desgraça junto ao senhor do Palatinado. Foi viver na Suécia, tendo sido professor em Lund e em Estocolmo. Data dessa época duas de suas mais famosas obras, “De iure naturae ac gentium” (1672) e “De officio hominis et civis” (1673). Foi muito produtivo durante os anos que se seguiram, publicando, ensinado e assumindo postos de Estado pela Europa do norte. Faleceu em 1694, em Berlim, na antiga Prússia, hoje Alemanha. 

Pufendorf foi uma figura chave na transição entre o direito natural do Medievo e o direito natural moderno, tendo sido um dos fundadores deste, pode-se dizer. Antes de mais nada, para Pufendorf, o direito natural é comum a todos os seres humanos, porque fundado na razão, e ele, o direito natural, se distingue da religião e da teologia, que podem variar de povo para povo. 

Aliás, no que toca à relação entre direito e religião, deve-se registrar o pioneirismo de Pufendorf na hoje tão debatida separação entre Estado e Igreja. Como anota Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014), Pufendorf, no seu tempo, defendeu uma “distinção entre a disciplina jurídica das igrejas no contexto do direito público (ius circa sacra) e as normas de organização interna das igrejas propriamente ditas (ius in sacra), a primeira reservada ao Estado, as segundas confiadas às igrejas: uma doutrina que está na base das teorias eclesiásticas do protestantismo e que estabelece as premissas de uma separação do papel do Estado em relação às confissões religiosas, que assim podem existir e coexistir”. 

Outra grande sacada de Pufendorf é vinculação que ele faz, bastante pé no chão, entre o direito natural e o direito positivo. Como explica o mesmo Antonio Padoa Schioppa, para Pufendorf, o que “torna operantes – e por isso dotados de juridicidade efetiva – os princípios do direito natural é a coatividade, vinculada ao direito positivo por meio do poder régio: um poder que, na visão de Pufendorf, tem as características de autoridade suprema e indivisa, próprias do absolutismo. Mesmo assim, o modo de governo, que para Pufendorf é idealmente determinado primeiramente pela submissão dos súditos ao poder do soberano, pode a seu ver ser livremente escolhido por parte do povo. E visto que o direito, tanto natural quanto positivo, consta de comandos e de sanções, onde faltam uns e outras, abre-se o campo da liberdade: para o direito, aquilo que não é proibido é lícito, mesmo que possa não estar em conformidade com a moral”. 

Não menos importante para o desenvolvimento da ciência jurídica é fato de haver Pufendorf imaginado e defendido em seus escritos, sempre homenageando a natureza e a razão humanas, um conjunto de princípios jurídicos (um direito, em última análise) que se aplicam a todas a pessoas, independentemente de suas nacionalidades ou religiões, a todos os Estados, individualmente ou em suas relações recíprocas, e mesmo entre Estados, coletividades ou pessoas em guerra, o que faz dele, neste particular, um dos mais influentes defensores da guerra justa. Na verdade, sua contribuição jusfilosófica repercute marcadamente no desenvolvimento de vários ramos do direito, mas em especial no direito internacional moderno (incluindo o direito de guerra), que ele, assim, marcadamente ajudou a moldar. 

Isso tudo sem falar que os trabalhos e as ideias de Pufendorf – vide, por exemplo, sua moderníssima definição dos requisitos necessários da lei: generalidade, irretroatividade, pertinência ao mundo dos comportamentos externos, aplicação das mesmas regras jurídicas a todos os súditos, sem distinção de classe –, bastante citados e debatidos durante o século XVIII, anteciparam e influenciaram o iluminismo jurídico que desabrocharia a seguir, culminando com as revoluções na França e na América do Norte, especialmente. 

É, esse tal de Pufendorf parece ter sido um jurista justo e iluminado. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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