Sobre Pufendorf
Tendo escrito nas duas últimas semanas sobre Marco Tullio Cicero
(106-43 a.C.) e sua filosofia naturalista do direito (embora muito
superficialmente, reconheço), hoje vou dar um salto de alguns séculos
para tratar de um outro expoente do direito natural: Samuel Pufendorf
(1632-1694).
Pufendorf nasceu em 1632 na pequena cidade de Dorfchemnit, situada
no antigo Ducado da Saxônia, que hoje é um dos estados da Alemanha. Seu
pai era pastor luterano, e seguir essa vocação era, num primeiro
momento, o destino traçado para o pequeno Samuel. Assim, bastante jovem,
Pufendorf foi estudar Teologia na Universidade de Leipzig. Mas não era
esse seu destino, e Pufendorf foi logo estudar na Universidade de Jena,
dedicando-se à matemática, à filosofia (Descartes, Hobbes e Grócio,
especialmente) e, sobretudo, ao direito, numa formação multidisciplinar
bastante comum aos mais dotados jovens germânicos de então. Terminou
seus estudos em 1658. Foi trabalhar na Dinamarca como professor/tutor
particular. Ali envolveu-se em escaramuças políticas e passou algum
tempo preso. Libertado, assumiu uma posição na Universidade de Leiden,
na Holanda. Em Lieden, escreveu “Elementa Jurisprudentiae Universalis”
(1661). Assim famoso, logo ganhou os favores do eleitor do Palatinado,
Carlos Luís (1617-1680), que criou, na Universidade de Heidelberg, uma
cadeira especialmente para ele. Mas em 1670 caiu em desgraça junto ao
senhor do Palatinado. Foi viver na Suécia, tendo sido professor em Lund e
em Estocolmo. Data dessa época duas de suas mais famosas obras, “De
iure naturae ac gentium” (1672) e “De officio hominis et civis” (1673).
Foi muito produtivo durante os anos que se seguiram, publicando,
ensinado e assumindo postos de Estado pela Europa do norte. Faleceu em
1694, em Berlim, na antiga Prússia, hoje Alemanha.
Pufendorf foi uma figura chave na transição entre o direito natural
do Medievo e o direito natural moderno, tendo sido um dos fundadores
deste, pode-se dizer. Antes de mais nada, para Pufendorf, o direito
natural é comum a todos os seres humanos, porque fundado na razão, e
ele, o direito natural, se distingue da religião e da teologia, que
podem variar de povo para povo.
Aliás, no que toca à relação entre direito e religião, deve-se
registrar o pioneirismo de Pufendorf na hoje tão debatida separação
entre Estado e Igreja. Como anota Antonio Padoa Schioppa (em “História
do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da
WMF Martins Fontes, 2014), Pufendorf, no seu tempo, defendeu uma
“distinção entre a disciplina jurídica das igrejas no contexto do
direito público (ius circa sacra) e as normas de organização interna das
igrejas propriamente ditas (ius in sacra), a primeira reservada ao
Estado, as segundas confiadas às igrejas: uma doutrina que está na base
das teorias eclesiásticas do protestantismo e que estabelece as
premissas de uma separação do papel do Estado em relação às confissões
religiosas, que assim podem existir e coexistir”.
Outra grande sacada de Pufendorf é vinculação que ele faz, bastante
pé no chão, entre o direito natural e o direito positivo. Como explica o
mesmo Antonio Padoa Schioppa, para Pufendorf, o que “torna operantes – e
por isso dotados de juridicidade efetiva – os princípios do direito
natural é a coatividade, vinculada ao direito positivo por meio do poder
régio: um poder que, na visão de Pufendorf, tem as características de
autoridade suprema e indivisa, próprias do absolutismo. Mesmo assim, o
modo de governo, que para Pufendorf é idealmente determinado
primeiramente pela submissão dos súditos ao poder do soberano, pode a
seu ver ser livremente escolhido por parte do povo. E visto que o
direito, tanto natural quanto positivo, consta de comandos e de sanções,
onde faltam uns e outras, abre-se o campo da liberdade: para o direito,
aquilo que não é proibido é lícito, mesmo que possa não estar em
conformidade com a moral”.
Não menos importante para o desenvolvimento da ciência jurídica é
fato de haver Pufendorf imaginado e defendido em seus escritos, sempre
homenageando a natureza e a razão humanas, um conjunto de princípios
jurídicos (um direito, em última análise) que se aplicam a todas a
pessoas, independentemente de suas nacionalidades ou religiões, a todos
os Estados, individualmente ou em suas relações recíprocas, e mesmo
entre Estados, coletividades ou pessoas em guerra, o que faz dele, neste
particular, um dos mais influentes defensores da guerra justa. Na
verdade, sua contribuição jusfilosófica repercute marcadamente no
desenvolvimento de vários ramos do direito, mas em especial no direito
internacional moderno (incluindo o direito de guerra), que ele, assim,
marcadamente ajudou a moldar.
Isso tudo sem falar que os trabalhos e as ideias de Pufendorf –
vide, por exemplo, sua moderníssima definição dos requisitos necessários
da lei: generalidade, irretroatividade, pertinência ao mundo dos
comportamentos externos, aplicação das mesmas regras jurídicas a todos
os súditos, sem distinção de classe –, bastante citados e debatidos
durante o século XVIII, anteciparam e influenciaram o iluminismo
jurídico que desabrocharia a seguir, culminando com as revoluções na
França e na América do Norte, especialmente.
É, esse tal de Pufendorf parece ter sido um jurista justo e iluminado.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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