24/06/2020



________ PERFIS DE NOSSA TERRA ______

ROMÃO, DISTINTO E PEDRO PIXILINGA

Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com


A Câmara Municipal de Macaíba concedeu tempos passados, o título de cidadania a três figuras representantes de uma época ida e vivida que os anos não trazem mais. Os três integram uma mesma geração, chegados cada um de suas respectivas origens, mas logo se harmonizaram e se entrelaçaram com Macaíba ao ponto de muita gente ainda pensar que aqui haviam nascido. Fincaram no chão de Severo, de Auta, Freire e Mesquita as raízes familiares, de geração a geração, desde o início do século passado.

ROMÃO BEZERRA:
Filho de Pedro Bezerra de Azevedo e Ana Bezerra de Azevedo, Romão Bezerra nasceu no dia 15 de novembro de 1914, na Fazena Rosário, em Santana do Matos e chegou a Macaiba pelos idos de 1928, para trabalhar numa sapataria do seu cunhado, Manoel Rodrigues de Oliveira. Em 04 de fevereiro de 1940, casou-se com a professora Enedina Augusta de Albuquerque. Da união amorosa, nasceram os filhos: Dilma, Dilson, Edilson e Romeu. Seu Romão foi uma tradição de retidão, honestidade e respeito conquistados, através dos anos, com muito trabalho na lide comercial, desde o velho mercado até o último ponto de sua atividade, na garagem de sua própria casa, já aposentado. Homem do interior, do campo, da vida rural, jamais deixou de possuir e cuidar de um pequeno rebanho, criado no sítio no fundo de sua residência. Desportista cruzeirense que admirava a arte futebolística do seu saudoso filho Edílson, meu amigo e compadre. Vibrava na emoção de pai com suas jogadas e o gol. Homem integrado a vida social da cidade, foi diretor de várias entidades, inclusive o Pax Club dos bons tempos dos anos 50. Romão Bezerra foi uma reserva moral de Macaíba, cujos cabelos brancos guardavam os dias e as noites da vida da cidade, como um relicário testemunhal da sua construção repetida através dos anos.

JOSÉ DISTINTO:
Zé Distinto ou Zé Fradinha, como queiram chamar, era um homem dócil, educado, sem nunca haver frequentado os bancos escolares. Formou-se pela universidade da vida e colou grau em Macaíba, nos anos vinte, quando aqui chegou e foi acolhido pela família de José Maria Magalhães e de Alberto Silva. O seu estilo de tratamento para com as pessoas, a sua obsequiosidade, a sua prestimosidade, fizeram-no um ser disponível, um samaritano, um próximo. Por trás do balcão do seu bar, na praça Augusto Severo, ele comandava um exército de fregueses, com atenção redobrada, onisciente e onipresente, como se adivinhasse, por antecipação e psicologia, o que cada freguês ia pedir. Conheceu muita gente no exercício da profissão. Tanto que fez um álbum de fotos de centenas de personalidades, ricas e pobres, mas todos amigos de Zé Fradinha e admiradores do seu ofício. Distinto conheceu Câmara Cascudo que lhe estimulou a prosseguir nas pesquisas fotográficas. Zé Distinto foi uma chama viva de um passado rico de humanidade, principalmente quando fez desfilar o seu álbum de relembranças.

PEDRO PIXILINGA:
Pedro Pixilinga foi o campeão dos carnavais de todos os tempos. Ele surge e ressurge nas avenidas de hoje como um fogo olímpico e emblemático da cultura carnavalesca. Fazia carnaval na base da resistência, do sacrifício, comandando “os Lampiões na Folia”. Pedro foi um poço de recordações. A vida lhe marcou muito, desde as alegrias até as tristezas. Mas nada lhe abalou, porque soube com coragem enfrentar os desafios de homem pobre e leal. Será lembrado sempre como o folião número 01 da cidade, o Lampião dos carnavais macaibenses.
Pedro Pixilinga, ao longo de mais de 50 anos, animou o carnaval da cidade comandando blocos, maxixeiras e bagunças. O seu último foi “Os Cangaceiros na Folia”, sempre fiel ao estilo antigo de desfilar ao som de marchinhas e frevos. Pedro era o Lampião do carnaval de Macaíba, que enfrentava na avenida as famosas escolas de samba “Aí Vem Os Malandros”, “Bafo da Onça”, “Ferro e Aço” e “Os Calouros do Samba”. O valente Pedro Pixilinga, com seus indomáveis cangaceiros e bonitas Marias, fazia um verdadeiro furor, com Ronaldo e Bodete no trombone, Pereira no pistom, Geraldo Paixão no contra-baixo, Banga no tarol, Bastinho no surdo e, de quebra, Belchior, naquela barulheira toda, tocava um banjo inaudível. Era o toque "felliniano" da folia. Na vida doméstica, Pedro era pobre e vivia do jogo do bicho e da roda da sorte de uma “roleta 36”, nos bons tempos. Todos os anos, alguém apostava e perdia: “Esse ano ele não sai!”. No domingo de carnaval, às três da tarde, "Os Cangaceiros da Folia" despontavam nas Cinco Bocas com Pedro à frente, efetuando as primeiras evoluções "lampiônicas". Hoje, tudo é só nostalgia.
Os três títulos concedidos, honrou e enobreceu a Câmara Municipal.


Festa de São João Batista
Padre João Medeiros Filho

O culto a São João Batista é bastante difundido no Brasil. Doze dioceses (inclusive a arquieparquia dos ucranianos de rito maronita, em Curitiba) lhe são dedicadas. É titular de centenas de igrejas e capelas espalhadas pelo país. No período colonial era muito venerado (junto com os anjos e arcanjos) pelos jesuítas. Câmara Cascudo registra esse fato e explica a devoção ao Precursor do Senhor em várias localidades potiguares. Segundo o historiador, aqueles missionários catequisaram Arês e disso resulta o orago de São João naquela comunidade. Os sacerdotes da Companhia de Jesus alternavam os patronos das populações por eles evangelizadas. Por exemplo, em Extremoz, São Miguel foi escolhido como protetor. A freguesia de Assú, de acordo com Cascudo, foi a segunda a ser criada na Província e tem São João Batista como padroeiro. Em Jucurutu, cuja paróquia teve parte de seu território desmembrada do Assú, o patrono original era São Miguel. Naquela região, situam-se São Rafael e São Miguel, ambas próximas de Angicos, cuja denominação primitiva era “Curral dos Padres” (em alusão aos jesuítas, que não se intitulam frades). Mais adiante, em Apodi, erigiu-se um templo dedicado a São João Batista e Nossa Senhora da Conceição. A esta veneração dos discípulos de Inácio de Loyola ao Precursor do Messias acrescente-se a de Dom João VI, igualmente seu devoto.
Desde os primeiros séculos do cristianismo, celebra-se a festa do filho de Zacarias e Isabel. Trata-se do último profeta que precede a vinda do Salvador. Com ele encerra-se o Antigo Testamento. Seu nome significa “Deus é misericórdia” ou “dádiva divina”. Ainda hoje, sua natividade é uma das festas mais populares, especialmente no Nordeste, contando com folguedos e comidas típicas. Reza uma tradição – carecendo de comprovação histórica – que o seu nascimento foi anunciado por meio de uma grande fogueira, pois seu pai ficou mudo, durante a gravidez de Isabel, não podendo se comunicar por palavras. A sua vinda é um importante acontecimento na vida do Povo de Deus. O próprio Cristo o define como “o maior entre os nascidos de mulher” (Mt 11, 11).
Quando se admira alguém, manifesta-se o desejo de aprofundar o conhecimento. Tratando-se de pessoa simples, acessível e sem ares de superioridade, tem-se a sensação de que se está diante de uma pessoa especial. João Batista é uma dessas figuras carismáticas, marcadas de humildade. “É preciso que Ele cresça e eu diminua” (Lc 3, 30), manifestou-se assim a respeito do Salvador. Não desejava aparecer e, por isso, tornou-se asceta no deserto. Um versículo bíblico resume seu desprendimento: “Depois de mim vem Aquele, do qual nem mereço desamarrar as sandálias” (Mt 3, 11). Jamais colocou sua pessoa acima da mensagem. Para João o essencial é o Filho de Deus.
Preparou-se durante anos para pregar o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Existem aqueles que saem anunciando Cristo, ao sabor do primeiro entusiasmo, confundindo os ensinamentos do Mestre com seus próprios interesses e ideologia, sem profundidade e convicção. João convidou o povo do seu tempo a rever suas práticas e costumes. Denunciou os erros, a injustiça, corrupção, falta de ética dos governantes de seu tempo e a dissolução dos costumes. Arriscou a sua própria vida. Viveu o que afirmara Tertuliano: “Temer somente a Deus e nunca aos homens”. Ou, como descreve o evangelista: “Não temais aqueles que matam somente o corpo” (Lc 12, 4). Lucas narra a seu respeito: “Crescia e se fortalecia em espírito. Vivia nos lugares desertos, até o dia em que se apresentou publicamente a Israel” (Lc 1, 80). João começou sua atividade profética longe dos centros de decisão e poder. Mostra-nos como deve ser a atitude do seguidor de Jesus, sobretudo no Brasil de hoje, onde se zomba do Povo de Deus e há tanta degradação de valores. Seu exemplo de coragem e despojamento permaneça vivo entre nós, especialmente na Igreja cuja missão é pregar a Palavra de Deus! Como ele, Monsenhor Lucas Batista Neto – que hoje aniversaria e cuja primeira paróquia tinha São João Batista como orago – seja por ele abençoado!

15/06/2020

As novas memórias
O mulato carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. E esse enorme prestígio de Machado de Assis se dá tanto cá, entre nós, quanto mundo afora, como se pôde constatar com o relançamento, nos Estados Unidos da América, na semana passada, pela respeitadíssima Penguin Books, do seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), com o título, traduzido ao pé da letra, “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”.
Enorme sucesso. Primeiro, de crítica. Se Harold Bloom (1930-2019), o grande literato recém-falecido, já havia apontado Machado como o “maior escritor negro de todos os tempos”, a prestigiosa revista New Yorker, agora, deu à sua resenha do livro o convidativo título – “Redescobrindo o livro mais espirituoso já escrito”. E, também, de público, já que o livro físico esgotou nas gigantes Amazon e Barnes & Noble em um só dia. Toda essa repercussão vocês podem conferir nos sites de lá (EUA) e de cá, como eu mesmo fiz no da própria Penguin (onde você pode ler um excerto do livro), na Amazon, na Superinteressante, na Veja e por aí vai.
Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (fundada em 1897), “O Bruxo do Cosme Velho” – epíteto de Machado, tornado célebre pelo nosso genial poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – escreveu em quase todos os gêneros literários. Fez poesia, teatro, crônica, crítica literária, jornalismo e por aí vai, mas foi sobretudo no conto/novela e no romance que ele produziu algumas das obras-primas da literatura brasileira e, posso dizer, universal. A lista é enorme. A dos meus preferidos também. Do conto/novela “O Alienista” (1892) à tríade de romances “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Quincas Borba” (1891) e “Dom Casmurro” (1899). Eu considero as “Memórias” o maior dos romances de Machado. “Quincas Borba”, o vice-campeão. Que me perdoem os amantes de “Dom Casmurro”. Questão de tema, talvez. Gosto dos filósofos loucos.
Na verdade, inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767), de Laurence Sterne (1713-1768), com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Que é um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo, disso ninguém duvida. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.
Bom, eu ainda não conheço fisicamente essa nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas” da Penguin Books. Mas eu tenho uma outra edição, em inglês, do maravilhoso romance. De 1991, editora Vintage. E nela, na contracapa, outro grande escritor, Salman Rushdie (1947-), faz rasgados elogios a Machado e a seu livro: “Se Borges é o escritor que fez Garcia Marquez possível, então não é exagero dizer que Machado é o escritor que fez Borges possível. (…) Ele é uma das obras-primas da literatura brasileira, e esta espirituosa e lúcida tradução é puro prazer de leitura”. Só o título dado em inglês à minha edição, “Epitaph of a Small Winner”, me soa estranho. Brás Cubas é hoje, sem dúvida, um “grande” vencedor.
Por fim, lembro-me bem de quando comprei essa edição, usada, por três libras, naquelas bancas de livros na margem sul do Tâmisa, em Londres. Memórias vivas, graças a Deus.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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11/06/2020



INSTITUTO PRÓ-MEMÓRIA DE MACAIBA

Valério Mesquita*


Aos macaibenses e macaibeiros, de perto e da distância, torna-se público que nasceu o Instituto Pró-Memória de Macaíba, com sede no Solar do Caxangá, Rua Dr. Pedro Velho, centro.

Macaíba, talvez nem precisasse mais repetir, é uma cidade de significativa densidade histórica e cultural, não apenas por ter sido berço de figuras proeminentes como Augusto Severo, Alberto Maranhão, Tavares de Lyra, Auta de Souza, Henrique Castriciano de Souza, João Chaves, Otacílio Alecrim, Jessé Pinto Freire, Enock Garcia, Alfredo Mesquita Filho, Major Antônio Andrade, José Jorge Maciel, Bartolomeu Fagundes, José Melquíades, Manoel Maurício Freire, Ivan e João Meira Lima e tantos outros, mas também porque foi palco do processo inicial de colonização que começou com o Solar do Ferreiro Torto, o Engenho dos Guarapes, a invasão dos holandeses guiados pelo judeu Jacob Raby e ali, bem perto, pelo martírio de Uruaçu, atual São Gonçalo do Amarante, cuja história política e social se confunde com a de Macaíba.

Essa identidade histórico-cultural estava para desaparecer. Os sobrados e casarões onde nasceu a maioria desses vultos já não existem mais. Foram derrubados ou descaracterizados. A cidade está na UTI da perda total da memória. E a tendência seria desaparecer tudo de vez, inclusive as datas célebres dos feitos dos seus filhos heróis, os livros, as ações, e os poucos monumentos que ainda restam.

Por isso tudo surgiu o Instituto com uma ideia, uma proposta de resgatar e salvaguardar o espólio cultural do Município para que não ficasse, também, comprometido, o seu futuro. Os anjos tutelares desse movimento são Olímpio Maciel Neto, Franklin Delano Garcia, Roosevelt Meira Garcia, Nídia Mesquita, além de outros componentes, igualmente filhos da terra-berço da maternidade. A sede da entidade foi uma opção pré-concebida de salvar da destruição iminente o Solar do Caxangá que pertenceu ao Coronel Afonso Saraiva e, depois, como dote de matrimônio de sua filha D. Segunda, no século dezenove, foi transferido para o Major Antônio Andrade de Lima.

Quem for a Macaíba conhecer o Solar, hoje cerca- do de construções irregulares que destruíram a visão senhorial do prédio, há de convir e constatar que a diretoria do Instituto fez o milagre da ressurreição, não deixando por terra uma das mais raras relíquias de mais de 150 anos de história. Macaibenses e macaibeiros: é chegada a hora de todos de boa vontade, que amam essa cidade, que lhe devem os sonhos e as ilusões, ajudarem o trabalho maior, não dos que caminham depressa e passam, mas dos que não param nunca de caminhar. Visitem a Casa da Memória Macaibense. Conheçam seus projetos. Irmanem-se em favor de uma causa que procura restituir a alma de sua cidade.




03/06/2020







A companhia dos livros
Há uma frase que adoro e sempre repito: “Um homem de espírito nunca se sente só consigo mesmo”. Não sei por que cargas d’água, sempre atribuí essa danada a Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Talvez se deva ao fato de achá-la a cara de “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister” (1796), que é, de par com “A montanha mágica” (1924) de Thomas Mann (1875-1955), um dos mais célebres “romances de formação” (“Bildungsroman”, em alemão) da história da literatura universal. Talvez seja apenas porque, assim, lhe empreste o argumento da autoridade. Se a frase fosse ou for minha, disso, de autoridade, teria muito pouco ou quase nada.
Na realidade, não sei nem se o seu conteúdo é verdadeiro. Já passei por maus bocados, solitário, quando estudei/morei fora do Brasil. Bom, muito provavelmente, eu não seja um “homem de espírito” tal qual Goethe se definia. Certamente é isso.
De toda sorte, nestes tempos tão difíceis, eu vou utilizar a sentença do autor de “Afinidades eletivas” (1796) para falar de um excelente tipo de companhia para a solidão: os livros. Os homens de espírito são, de modo geral, muito afeiçoados a eles.
Muito se fala dos benefícios trazidos pelos livros e pela leitura. Castro Alves (1847-1871), em seu poema “O livro e a América”, disse: “Oh! Bendito o que semeia/Livros...livros à mão cheia.../E manda o povo pensar!/O livro caindo n’alma/ É germe — que faz a palma/É chuva — que faz o mar”. Cultura, educação, conhecimento. Coisas tão caras à civilização, mas que hoje, muito frequentemente, são desprezadas por alguns obscurantistas, aqui e alhures. E, para além do conhecimento, os livros, os bons livros, escritos por mentes iluminadas, durante os mais de dois mil anos da nossa história, também nos dão inspiração, sanidade e felicidade. Por fim, eles nos curam de muito males. Inclusive os males de que hoje estamos padecendo.
Por sinal, conheço um livro interessantíssimo, que trata precisamente disso: “Farmácia Literária” (Versus Editora, 2016), de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Organizado em forma de dicionário, nele “os leitores podem simplesmente procurar por sua ‘doença’, seja ela agorafobia, tédio ou crise da meia-idade, e encontrarão um romance como antídoto”. E a chamada “biblioterapia” do livro “não discrimina entre as dores do corpo e as da mente (ou do coração). Está convencido de que tem sido covarde? Leia O sol é para todos e receba uma injeção de coragem. Vem experimentando um súbito medo da morte? Mergulhe em Cem anos de solidão para ter uma nova perspectiva da vida como um ciclo maior. Ansioso porque vai dar um jantar em sua casa? [Coisa quase impossível hoje, não?] Suíte em quatro movimentos, de Ali Smith, vai convencê-lo de que a sua noite nunca poderá dar tão errado”.
Nestes tempos bicudos, tão escassos de contatos pessoais, em que, tal qual o “Elefante” de Carlos Drummond de Andrade (1902-1907), estamos ávidos “para sair à procura de amigos”, num “mundo enfastiado, que já não crê nos bichos e duvida das coisas”, quando “não há na cidade alma que se disponha a recolher em si”, do nosso “corpo sensível, a fugitiva imagem, o passo desastrado, mas faminto e tocante”, sobretudo “faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar, no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas”, a melhor companhia/remédio que podemos ter são os livros. Com efeitos colaterais mínimos, juro.
Na verdade, isso vale não só para agora. Na vida, nem sempre podemos ter nossas amadas conosco. Nem nossa família. Ou mesmo os nossos amigos. No frigir dos ovos, para termos qualquer dessas companhias, dependemos da vontade de outrem. E até já foi dito, por um tal Jean Paul Sartre (1905-1980), embora em outro contexto, que “o inferno são os outros”. Já na companhia de um grande livro, com suas narrativas e suas personagens, não dependemos de ninguém. Estaremos sempre bem acompanhados, mesmo estando sozinhos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
“Tudo passa. Só Deus basta”
Padre João Medeiros Filho

Muitos conhecem essa afirmação da poetisa e mística espanhola Santa Teresa d´Ávila, inspirada no Evangelho: “o céu e a terra passarão, mas minhas palavras jamais passarão” (Mt 24, 35; Lc 21, 33). Um cantor da atualidade interpreta uma música de sua autoria, na qual entoa: “A vida é [como as águas de] um rio. Não seremos os mesmos jamais. Se a gente falar menos... teremos estrelas pra alcançar, sonhos pra sonhar, flores pra regar”. Talvez, alguns recordem Maysa, interpretando um de seus grandes sucessos: “Meu mundo caiu”. O título da música é deveras atual. O universo de cada um desabou, dos sonhos banais aos ideais mais consagrados da alma humana. A fênix de nosso íntimo ressurgirá e sairá voando em busca da ressignificação dos valores, outrora inarredáveis em nossos devaneios. Igualmente, procurará algum porto seguro, onde possa depositar novas convicções. É o momento do Pai e de sua graça, como expressava a filósofa Simone Weil, sempre sedenta do Infinito, em “Attente de Dieu” (À espera de Deus).
A pandemia, que ora grassa pelo nosso país, colocou-nos cara a cara com pretensas certezas, derrubando a segurança de algumas emoções. Ela sacudiu-nos com angústias e temores, abalando nossos alicerces. Mas, no ziguezague dos sustos e apreensões, Cristo sempre aparece, apontando a estrada: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6). Paul Claudel (que foi diplomata no Brasil) dizia: “Jesus desafia-nos a assumir nossa infância espiritual e, vez por outra, brinca de esconde-esconde conosco”. Pode-se verificar tal assertiva, perpassando pelas páginas dos evangelhos. No episódio dos discípulos de Emaús, o Ressuscitado permaneceu inicialmente desconhecido, durante a viagem. Mas, ao sentir a tristeza dos caminhantes desnorteados, revelou-se, demonstrando que está sempre conosco e não nos abandona à própria sorte.
É possível que saibamos agora dar o devido valor à conversa com os amigos no café da esquina; ao cheiro da comidinha caseira; ao abraço apertado na pessoa querida e, até mesmo, às nossas briguinhas familiares. Aprenderemos melhor a repaginar tudo o que era desvalorizado pela banalidade do gesto ou trivialidade do conteúdo. Isso irá nos ensinar: “Vita quae sera tamen” (vida ainda que tardia). Mudaríamos uma palavra do lema dos inconfidentes mineiros, oriundo da Primeira Égloga de Virgílio. Acreditamos que mudar é preciso, realidade preconizada por Cristo, na narrativa do evangelista João, ao dialogar com Nicodemos: “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3).
Recentemente, aqui no Brasil, pessoas indignaram-se porque na França – a partir da reabertura gradual do comércio – formaram-se filas em frente a uma tradicional loja parisiense de roupas. Também se poderia condenar, por acaso, uma jovem que vá a um shopping natalense (quando voltar a funcionar) e comprar uma linda blusa, e vestida com ela contemplar a beleza do mar e o encanto do pôr do sol? Optaria por um visual diferente, simbolismo externo da renovada vestimenta da alma. Afinal, o mundo não mudou? O Evangelho é isso: Boa Nova, alegria, outra visão do mundo e das pessoas. Cristo ensinou: “Verão novos céus e nova terra” (Ap 21, 1). Sua mensagem é clara. Mas, a dor teve de vir para nos fazer abrir os olhos. Foram-se as nossas pretensas certezas.
A pandemia trouxe lições que insistíamos em não aprender. Poderemos ser felizes sem as “seguranças”, que nos tornaram frágeis e as obviedades que nos obnubilaram. Falarão mais alto as palavras do apóstolo Paulo: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4, 13). Ou ainda, a advertência do Mestre: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Já não somos mais o que éramos. Voltaremos às nossas origens. “Somos filhos de Deus, dele saímos e para Ele voltaremos” (Rm 8, 16). A vida se renovará e o Amor ressurgirá. Vale lembrar as sábias palavras de Sêneca “Durante toda a vida é preciso reaprender a viver”. Esperamos que se possa também ter chegado à conclusão de que ainda (infelizmente) “debaixo do sol, no lugar do direito reina a impiedade, em vez da justiça domina a iniquidade”! (Ecl 3, 16). E isso não é de Deus!