As novas memórias
O mulato carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. E esse enorme prestígio de Machado de Assis se dá tanto cá, entre nós, quanto mundo afora, como se pôde constatar com o relançamento, nos Estados Unidos da América, na semana passada, pela respeitadíssima Penguin Books, do seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), com o título, traduzido ao pé da letra, “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”.
Enorme sucesso. Primeiro, de crítica. Se Harold Bloom (1930-2019), o grande literato recém-falecido, já havia apontado Machado como o “maior escritor negro de todos os tempos”, a prestigiosa revista New Yorker, agora, deu à sua resenha do livro o convidativo título – “Redescobrindo o livro mais espirituoso já escrito”. E, também, de público, já que o livro físico esgotou nas gigantes Amazon e Barnes & Noble em um só dia. Toda essa repercussão vocês podem conferir nos sites de lá (EUA) e de cá, como eu mesmo fiz no da própria Penguin (onde você pode ler um excerto do livro), na Amazon, na Superinteressante, na Veja e por aí vai.
Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (fundada em 1897), “O Bruxo do Cosme Velho” – epíteto de Machado, tornado célebre pelo nosso genial poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – escreveu em quase todos os gêneros literários. Fez poesia, teatro, crônica, crítica literária, jornalismo e por aí vai, mas foi sobretudo no conto/novela e no romance que ele produziu algumas das obras-primas da literatura brasileira e, posso dizer, universal. A lista é enorme. A dos meus preferidos também. Do conto/novela “O Alienista” (1892) à tríade de romances “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Quincas Borba” (1891) e “Dom Casmurro” (1899). Eu considero as “Memórias” o maior dos romances de Machado. “Quincas Borba”, o vice-campeão. Que me perdoem os amantes de “Dom Casmurro”. Questão de tema, talvez. Gosto dos filósofos loucos.
Na verdade, inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767), de Laurence Sterne (1713-1768), com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Que é um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo, disso ninguém duvida. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.
Bom, eu ainda não conheço fisicamente essa nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas” da Penguin Books. Mas eu tenho uma outra edição, em inglês, do maravilhoso romance. De 1991, editora Vintage. E nela, na contracapa, outro grande escritor, Salman Rushdie (1947-), faz rasgados elogios a Machado e a seu livro: “Se Borges é o escritor que fez Garcia Marquez possível, então não é exagero dizer que Machado é o escritor que fez Borges possível. (…) Ele é uma das obras-primas da literatura brasileira, e esta espirituosa e lúcida tradução é puro prazer de leitura”. Só o título dado em inglês à minha edição, “Epitaph of a Small Winner”, me soa estranho. Brás Cubas é hoje, sem dúvida, um “grande” vencedor.
Por fim, lembro-me bem de quando comprei essa edição, usada, por três libras, naquelas bancas de livros na margem sul do Tâmisa, em Londres. Memórias vivas, graças a Deus.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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