O crime na literatura brasileira
Não faz muito tempo, eu escrevi aqui sobre Enrico Ferri (1856-1929) e o
seu livro “Os criminosos na arte e na literatura” (publicado entre nós
por Ricardo Lenz Editor, em 2001). Hoje vou tratar do que posso chamar
seu “congênere” brasileiro, Lemos Britto (1886-1963), e do seu “O crime e
os criminosos na literatura brasileira”, livro cuja edição que possuo,
velhinha mas em bom estado, é de 1946, da outrora retumbante Livraria
José Olympio Editora.
José Gabriel de Lemos Britto foi um
político, professor, historiador, economista, jurista e criminalista
nascido no estado da Bahia. De caráter reformador, Lemos Britto foi, sem
dúvida, um dos grandes penalistas brasileiros no começo do século XX,
sobretudo no campo da criminologia (onde misturava história, medicina,
psicologia e direito) e do direito prisional. Foi autor de muitos
livros. Eu mesmo fui à caça da sua bibliografia e achei, na página do
WorldCat (catálogo que é gerido pela Online Computer Library Center,
organização sem fins lucrativos, considerada a maior cooperativa de
bibliotecas online do mundo), títulos tão variados como “Nossa
independência: páginas escriptas para as crianças brasileiras” (1922),
“A neutralidade do Brasil em face do direito internacional” (1925),
“Psychologia do adultério” (1933), “A gloriosa sotaina do Primeiro
Império: Frei Caneca” (1937), “Pontos de partida para a história
econômica do Brasil” (1939) e por aí vai.
Dentre esses tantos
livros, para nós, amantes da mistura direito e literatura, avulta o
citado “O crime e os criminosos na literatura brasileira”. Um ensaio
que, segundo o seu autor, “não é obra de arte ou de crítica literária;
não é, tão pouco, tratado de psicologia criminal. Não procura imitar o
conhecido livro de Ferri, I Delinque nell´Arte, nem o magistral trabalho
de Giovanni Lombardi, intitulado Arte e Delinqueza. Difere de todos
eles e não se propõe atingir uma tal altitude no domínio espiritual. O
campo em que estas e outras obras de seu porte situam as reações da
literatura à criminalidade é, apesar de surpreendente pela beleza, de
notável pela acuidade de seus autores, e de seu caráter ou feitio
internacional, restrito, limitado: a filosofia e a arte aí se encontram
com o Direito, mas apenas determinados escritores e poetas, marcantes
por seu gênio em várias épocas, nalguns países, são chamados à fala e
estudados como precursores de ideias que deveriam mais tarde sombrancear
as raias da criminologia e da psiquiatria. São livros de visada
universal, ao passo que este é de caráter nacional, só se fazendo, nele,
referência a escritores ou juristas estrangeiros para elucidar pontos
omissos, ilustrar afirmações ou estabelecer confrontos úteis”.
Não estou muito certo dessas dessemelhanças alegadas por Lemos Britto.
Não conheço o livro de Lombardi (o citado “Arte e Delinquenza”). Mas já
escrevi sobre o livro de Ferri e vejo mais semelhanças de propósitos do
que diferenças de conteúdo entre os livros. E, afinal, a própria
necessidade de referência aos títulos no primeiro parágrafo da sua
“Introdução” denuncia o contrário do que ele diz.
De toda
sorte, como disse o próprio autor, “crime é velho como a própria
humanidade. (…), e a literatura, que é expressão da vida humana no que
ela oferece de belo e de feio, de bom e de mau, de refalsado ou
verdadeiro, de virtuoso ou de maligno, não podia deixar de reproduzir as
maldades humanas”, em que pese a admoestação um bocado ingênua do
grande Platão (427-347 a.C.) contra a arte imitativa da mentira, do
vício, da paixão e do delito, que apenas glamorizaria o que há de pior
nos instintos humanos. Assim, não poderia ser diferente com a literatura
brasileira, embora talvez em menor grau, como entende o próprio Lemos
Britto. Também temos crimes e criminosos em nossos romances, novelas,
contos e poesia. E, graças a Deus, tivemos esse criminalista baiano para
nos apontar essa maravilhosa literatura e os seus autores.
Se
em “Os criminosos na arte e na literatura”, Ferri trata de gente como
William Shakespeare (1564-1616), Friedrich Schiller (1759-1805), Émile
Gaboriau (1832-1873), Victor Hugo (1802-1885), Émile Zola (1840-1902),
Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Leon Tolstói (1828-1910), Henrik Ibsen
(1828-1906) e Gabrielle D’Annuzio (1863-1938), entre outros, em “O
crime e os criminosos na literatura brasileira”, Lemos Britto cuida dos
gigantes das nossas letras. Nas palavras do próprio autor, “de par com
os mais altos espíritos de nossas letras, os Rui, os Machado de Assis,
os Gonçalves Dias, os Sílvio Romero, os Castro Alves, o leitor
encontrará, sem linhas divisórias preestabelecidas, os romancistas e
poetas de hoje, os José Lins do Rego, os Lúcio Cardoso, os Abguar
Bastos, os Catulo da Paixão Cearense. E de braço dado com José
Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Bilac, Cruz e Souza, os Jorge Amado, os
Jorge de Lima, os Orígenes Lessa, os Phocion Serpa. Finalmente, na maior
intimidade de Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Graça Aranha, Afonso
Arinos, José de Alencar, Taunay e Afrânio Peixoto, os José Américo, os
Afonso Schmidt, os Augusto dos Anjos, os Octávio de Faria e os Roberto
Gil”. E aqui, curiosamente, afirma Lemos Britto acerca dos nossos
luminares: “Não me preocupam as ideias que professam, as crenças que
têm, os credos políticos a que se filiam. Esta obra estaria
completamente desfigurada se entrasse nos domínios do sectarismo
literário, filosófico, religioso, político”.
Bom, também não
estou muito certo da completa isenção ideológica do autor. Ninguém
consegue ser livre de todos os seus preconceitos. Ninguém. Os analistas
posteriores de “O crime e os criminosos na literatura brasileira”,
aliás, apontam a obra como de claro pendor lombrosiano. Certamente,
histórias e estórias relacionadas a sexo e raça, como causa ou sintoma
da criminalidade, têm destaque no livro de Lemos Britto. E isso é mais
que controverso. Mas já é grande coisa, no Brasil de hoje, em que tudo
tem um viés ideológico, quase patológico, profundamente marcado pela
ignorância, que possamos ler alguém que procura – e acredito na
sinceridade dele – ser “isento”. Mesmo que esse alguém tenha escrito há
coisa de oitenta anos atrás.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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