Literatura reformista
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Já defendi neste espaço, algumas vezes, o estudo do direito por
intermédio da literatura (leia-se, aqui, ficcional). E dei várias razões
para tanto. Uma delas é o papel que a literatura pode ter na reforma –
para melhor, claro – do direito. Embora não seja papel dela explicar ou
mesmo reformar o direito (ou qualquer outro conhecimento humano), sua
contribuição nesse sentido, sobretudo a partir de interfaces com a
antropologia e a sociologia, é inegável.
Como lembram André
Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e
literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que
faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”,
publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), “a literatura
constitui uma espécie de repositório privilegiado através do qual se
inferem informações e subsídios capazes de contribuir diretamente na
compreensão das relações humanas que compõem o meio social, isto é, o
caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, opera o direito”. A
literatura ficcional, portanto, muito nos auxilia na compreensão do
direito e de seus fenômenos.
Some-se a isso o fato de que a
literatura ficcional geralmente apresenta uma visão crítica do direito,
desprovida ou para além das amarras de um legalismo que, muitas vezes,
embaça a visão e tolhe a liberdade do jurista de profissão. A análise do
direito por intermédio da ficção nos permite o descobrimento de outros
dos seus sentidos, em regra bem mais próximos de um ideal de Justiça.
Assim, a literatura ficcional, ao mesmo tempo em que reproduz (além da
concepção particular de seu autor) o direito posto e o imaginário
popular acerca das diversas temáticas jusfilosóficas (tanto as ideias
como as escolas), também influencia, em graus variados, a construção
desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá
com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes,
com a moda etc.), ela (a literatura) é subversiva, tanto para a
filosofia do direito como para o direito positivo de dado país.
Diz-se haver sido Charles Dickens (1812-1870), com seus maravilhosos
romances, um dos grandes reformadores do direito do seu tempo, marcado
pelas mazelas dos primeiros anos da Revolução Industrial. Mas não foi o
autor de “Oliver Twist” (1837) e “Great Expectations” (1961) que militou
nesse sentido. Muitas personagens de romances foram críticos do direito
em vigor. William P. MacNeil (no livro “Novel Judgements: Legal Theory
as Fiction”, editora Routledge, 2012), levando em consideração a
literatura em língua inglesa do século XIX, aponta algumas dessas
personagens em Elizaberth Bennet (de “Pride and Prejudice”), Rebecca of
York (“Ivanhoe”), Frankenstein's Monster (“Frankenstein”), Esther
Summerson (“Bleak House”), Joe Gargery (“Great Expectations”), Sidney
Carton (“A Tale of Two Cities”) e Holgrave (“The House of the Seven
Gables”).
Vou dar aqui mais dois exemplos precisos do que estou
falando, desta vez tirados de um livro que, coincidentemente, estou
lendo por estes dias, “História do direito na Europa: da Idade Média à
Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014), de Antonio
Padoa Schioppa: “Um primeiro setor de inovações legislativas diz
respeito à família. Na França, a Restauração havia abolido o divórcio
admitido no Código Napoleônico. A crescente consciência das
consequências não raro dramáticas, sobretudo para a mulher, de uniões
irremediavelmente viciadas – uma consciência exaltada com muita eficácia
também pela literatura: pense-se em Madame Bovary de Flaubert ou em
Anna Karenina de Tolstoi – levou em 1884, após longas batalhas
parlamentares e de opinião, à reintrodução do divórcio na França,
limitado contudo a poucas causas específicas (rapto, estupro, sevícias,
condenação penal) e com a exclusão do consentimento mútuo como causa de
dissolução do vínculo. Ainda na França, muito gradualmente se impôs
também a proteção da mulher: à esposa é reconhecida uma pequena
capacidade de agir, bem como o usufruto de uma parcela dos bens do
cônjuge falecido, a mulher separada foi subtraída ao poder marital,
concedeu-se à mulher trabalhadora a possibilidade de dispor livremente
de seu salário”.
Como já disse certa vez, não é assim de causar
espanto que esses “críticos” – autores e personagens – tenham antecipado
boa parte das modernas teorias e tendências do direito (tais como o
feminismo, a ética jurídica, o biodireito etc.). De fato, muitas das
ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à
mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais
vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão,
denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P.
MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The
Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007). Se
isso seu deu nos tempos de Dickens, de Gustave Flaubert (1821-1880) e de
Leon Tolstói (1828-1910), também se dá no nosso. Podem confiar no que
eu escrevo.
Por fim, dito tudo isso, vou agora esquecer o
direito e as suas reformas. Vou até deixar de lado a tal “História do
direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”. E vou xeretar
os meus exemplares de “Madame Bovary” (da Abril Cultural, 1971) e de
“Ana Karênina” (da Nova Cultural, em dois volumes, 1995). Para o fim de
semana, parece muito mais agradável.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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