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19/02/2019


O crime na literatura brasileira

Não faz muito tempo, eu escrevi aqui sobre Enrico Ferri (1856-1929) e o seu livro “Os criminosos na arte e na literatura” (publicado entre nós por Ricardo Lenz Editor, em 2001). Hoje vou tratar do que posso chamar seu “congênere” brasileiro, Lemos Britto (1886-1963), e do seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira”, livro cuja edição que possuo, velhinha mas em bom estado, é de 1946, da outrora retumbante Livraria José Olympio Editora.
José Gabriel de Lemos Britto foi um político, professor, historiador, economista, jurista e criminalista nascido no estado da Bahia. De caráter reformador, Lemos Britto foi, sem dúvida, um dos grandes penalistas brasileiros no começo do século XX, sobretudo no campo da criminologia (onde misturava história, medicina, psicologia e direito) e do direito prisional. Foi autor de muitos livros. Eu mesmo fui à caça da sua bibliografia e achei, na página do WorldCat (catálogo que é gerido pela Online Computer Library Center, organização sem fins lucrativos, considerada a maior cooperativa de bibliotecas online do mundo), títulos tão variados como “Nossa independência: páginas escriptas para as crianças brasileiras” (1922), “A neutralidade do Brasil em face do direito internacional” (1925), “Psychologia do adultério” (1933), “A gloriosa sotaina do Primeiro Império: Frei Caneca” (1937), “Pontos de partida para a história econômica do Brasil” (1939) e por aí vai.
Dentre esses tantos livros, para nós, amantes da mistura direito e literatura, avulta o citado “O crime e os criminosos na literatura brasileira”. Um ensaio que, segundo o seu autor, “não é obra de arte ou de crítica literária; não é, tão pouco, tratado de psicologia criminal. Não procura imitar o conhecido livro de Ferri, I Delinque nell´Arte, nem o magistral trabalho de Giovanni Lombardi, intitulado Arte e Delinqueza. Difere de todos eles e não se propõe atingir uma tal altitude no domínio espiritual. O campo em que estas e outras obras de seu porte situam as reações da literatura à criminalidade é, apesar de surpreendente pela beleza, de notável pela acuidade de seus autores, e de seu caráter ou feitio internacional, restrito, limitado: a filosofia e a arte aí se encontram com o Direito, mas apenas determinados escritores e poetas, marcantes por seu gênio em várias épocas, nalguns países, são chamados à fala e estudados como precursores de ideias que deveriam mais tarde sombrancear as raias da criminologia e da psiquiatria. São livros de visada universal, ao passo que este é de caráter nacional, só se fazendo, nele, referência a escritores ou juristas estrangeiros para elucidar pontos omissos, ilustrar afirmações ou estabelecer confrontos úteis”.
Não estou muito certo dessas dessemelhanças alegadas por Lemos Britto. Não conheço o livro de Lombardi (o citado “Arte e Delinquenza”). Mas já escrevi sobre o livro de Ferri e vejo mais semelhanças de propósitos do que diferenças de conteúdo entre os livros. E, afinal, a própria necessidade de referência aos títulos no primeiro parágrafo da sua “Introdução” denuncia o contrário do que ele diz.
De toda sorte, como disse o próprio autor, “crime é velho como a própria humanidade. (…), e a literatura, que é expressão da vida humana no que ela oferece de belo e de feio, de bom e de mau, de refalsado ou verdadeiro, de virtuoso ou de maligno, não podia deixar de reproduzir as maldades humanas”, em que pese a admoestação um bocado ingênua do grande Platão (427-347 a.C.) contra a arte imitativa da mentira, do vício, da paixão e do delito, que apenas glamorizaria o que há de pior nos instintos humanos. Assim, não poderia ser diferente com a literatura brasileira, embora talvez em menor grau, como entende o próprio Lemos Britto. Também temos crimes e criminosos em nossos romances, novelas, contos e poesia. E, graças a Deus, tivemos esse criminalista baiano para nos apontar essa maravilhosa literatura e os seus autores.
Se em “Os criminosos na arte e na literatura”, Ferri trata de gente como William Shakespeare (1564-1616), Friedrich Schiller (1759-1805), Émile Gaboriau (1832-1873), Victor Hugo (1802-1885), Émile Zola (1840-1902), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Leon Tolstói (1828-1910), Henrik Ibsen (1828-1906) e Gabrielle D’Annuzio (1863-1938), entre outros, em “O crime e os criminosos na literatura brasileira”, Lemos Britto cuida dos gigantes das nossas letras. Nas palavras do próprio autor, “de par com os mais altos espíritos de nossas letras, os Rui, os Machado de Assis, os Gonçalves Dias, os Sílvio Romero, os Castro Alves, o leitor encontrará, sem linhas divisórias preestabelecidas, os romancistas e poetas de hoje, os José Lins do Rego, os Lúcio Cardoso, os Abguar Bastos, os Catulo da Paixão Cearense. E de braço dado com José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Bilac, Cruz e Souza, os Jorge Amado, os Jorge de Lima, os Orígenes Lessa, os Phocion Serpa. Finalmente, na maior intimidade de Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Graça Aranha, Afonso Arinos, José de Alencar, Taunay e Afrânio Peixoto, os José Américo, os Afonso Schmidt, os Augusto dos Anjos, os Octávio de Faria e os Roberto Gil”. E aqui, curiosamente, afirma Lemos Britto acerca dos nossos luminares: “Não me preocupam as ideias que professam, as crenças que têm, os credos políticos a que se filiam. Esta obra estaria completamente desfigurada se entrasse nos domínios do sectarismo literário, filosófico, religioso, político”.
Bom, também não estou muito certo da completa isenção ideológica do autor. Ninguém consegue ser livre de todos os seus preconceitos. Ninguém. Os analistas posteriores de “O crime e os criminosos na literatura brasileira”, aliás, apontam a obra como de claro pendor lombrosiano. Certamente, histórias e estórias relacionadas a sexo e raça, como causa ou sintoma da criminalidade, têm destaque no livro de Lemos Britto. E isso é mais que controverso. Mas já é grande coisa, no Brasil de hoje, em que tudo tem um viés ideológico, quase patológico, profundamente marcado pela ignorância, que possamos ler alguém que procura – e acredito na sinceridade dele – ser “isento”. Mesmo que esse alguém tenha escrito há coisa de oitenta anos atrás.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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