O direito contado (II)
No artigo da semana passada, eu defendi aqui, basicamente, que a
consciência jurídica do cidadão médio não é formada através de tratados
ou de manuais de direito, mas, sim, por intermédio de outras fontes,
entre elas a ficção jurídica.
De modo bastante prosaico até,
parece-me certo que o cidadão médio tem muito mais contato com o direito
e os operadores jurídicos ficcionais (incluindo-se aqui os personagens
literários, de filmes e, no Brasil, sobretudo, os de telenovelas) do que
com a vida forense de fato e com os seus profissionais reais.
Consequentemente, a imagem que esse cidadão faz do direito, da lei, do
valor “Justiça”, do aparelho judicial, do Ministério Público, dos
juízes, dos promotores, dos advogados etc. é formada muito mais através
da ficção e de outras formas de narrativas (em suas diversas formas,
incluindo o cinema, a televisão e as redes sociais) do que a partir de
experiências diretas pessoais com o mundo jurídico como, de fato, ele é.
E para além disso, como lembram André Karam Trindade e Roberta
Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e
perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro
“Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria
do Advogado Editora em 2008), a literatura faz com que o leitor seja
conduzido, frequentemente sem se dar conta disso, “da narração à norma,
isto é, de uma história à reflexão sobre um determinado preceito do
mundo da vida – aqui entendido como verdadeiro leitmotiv do direito”. E,
assim, o direito-norma, para o leitor e homem médio, é aquele que
decorre, a partir da ótica do autor e da sua própria interpretação, dos
casos a ele narrados.
Foi a partir de tudo isso, lembram ainda
os autores acima referidos, que François Ost propôs a sua teoria do
“direito contado”, “na qual os casos exsurgem na sua singularidade, ao
invés de uma teoria do direito analisado – originado a partir de
fundamentos hipotéticos, articulado em torno de pirâmides de normas,
marcado pela atemporalidade metafísica, e, paradoxalmente, cúmplice de
discricionariedades –, ainda predominante no ensino jurídico, cujo
caráter analítico, de inspiração legalista e positivista, mantém o
jurista refém do sentido (demasiadamente) comum teórico, sem que ele
consiga dar-se conta da crise de dupla face – paradigma liberal e
paradigma da filosofia da consciência – na qual o direito se encontra
mergulhado”.
A apreensão e construção do direito através da
literatura tem seu lado bom. Muito bom, aliás. Exigir do cidadão médio o
conhecimento de códigos, de leis intrincadas e de manuais de direito
seria absurdo. Portanto, a ficção jurídica é uma forma, bastante lúdica e
agradável por sinal, de ter o homem comum (ou mesmo aquele com formação
jurídica) acesso ao mundo do direito. Ademais, há mesmo quem diga que
alguns temas do direito acham-se melhor formulados, aclarados e,
sobretudo, ilustrados em obras-primas da ficção do que em tratados,
manuais ou monografias especializadas da ciência jurídica. Pode até ser.
De toda sorte, uma coisa é certa: a literatura ficcional geralmente
apresenta uma visão crítica do direito, desprovida ou para além das
amarras de um legalismo que, muitas vezes, embaça a visão e tolhe a
iniciativa do jurista. A análise do direito por intermédio da ficção nos
permite o descobrimento de outros dos seus sentidos, em regra bem mais
próximos de um ideal de Justiça. E não nos causa assim espanto que essa
ficção jurídica (vide o caso das telenovelas no Brasil) tenha
antecipado, como eu até já mencionei aqui, muito das modernas teorias e
tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o
biodireito, o feminismo, a transexualidade etc, num ataque justificado à
mentalidade jurídica consolidada.
Mas há, também, o lado ruim
da coisa (ou da “força”, como diriam os fãs de “Guerra na Estrelas”).
Antes de mais nada, há o sério problema da não correspondência entre o
conteúdo da obra literária e a realidade do mundo jurídico, o que
corriqueiramente se dá, uma vez que estamos falando, essencialmente, de
obras de ficção. Nesse sentido, posso de logo assegurar que a ficção
jurídica testemunha a visão sobre o mundo do direito existente em
determinada sociedade em certa época, mas essa visão é marcada, em
pequena ou grande medida, pela ótica particular do seu autor. E esse
testemunho, humano, é muitas vezes impreciso ou preconceituoso.
Nesse ponto, sem dúvida, a literatura – as narrativas, como um todo,
para abranger o que vemos hoje na grande imprensa e nas redes sociais –
contribui para a construção cultural da psicologia popular. Ela
estrutura uma realidade jurídica, a partir do universo das
possibilidades, que nem sempre coincide – os mais pessimistas diriam,
nestes tempos de “fake news”, que “raramente” – com o que realmente
existe ou existiu. E se outrora aprendemos que “o direito se origina no
fato” (“ex facto ius oritur”), hoje ganha cada vez mais valia a
assertiva de François Ost no sentido de que “do relato é que advém o
direito” (“ex fabula ius oritur”).
E será essencialmente sobre
esse problema – da hoje quase completa prevalência do direito narrado
sobre um direito analisado – que conversaremos no artigo da semana que
vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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