Viajando com a amiga (III)
Agatha Christie (1890-1976) ganhou o mundo. Com suas estórias,
traduzidas para um sem-número de línguas, chegando a todas as partes do
planeta. E, também, para o nosso deleite, em suas estórias. Como já dito
aqui, se sua Miss Marple, mais provinciana, esteve uma vez de férias no
Caribe, o seu Hercule Poirot, com meios e recursos para tanto, andou
muito mais longe: nos Bálcãs, em Istambul, na Mesopotâmia, no Egito e
por aí vai.
Na verdade, a própria vida de Agatha Christie sob
esse aspecto é bastante peculiar. Se hoje, com os preços mais acessíveis
das passagens áreas, estamos acostumados com a ideia de visitarmos
outras culturas, no tempo de Christie, sobretudo nos seus anos de
formação, não era assim. A futura Rainha do Crime, entretanto, desde
cedo, viajou muito. E para bem longe.
Como bem relata Martin
Fido, em “The World of Agatha Christie: the Facts and Fiction behind the
Word’s of Greatest Crime Writer” (Editora SevenOaks, 2010), “a
variedade de experiências de viagem de Agatha Christie era realmente
incompreensível para a sua geração. França, Alemanha, Cairo. Ainda antes
de se casar, ela já tinha viajado aquilo que seus contemporâneos só
teriam alcançado em uma vida inteira. Aos Pirineus com Archie [Archibald
Christie, 1889-1962, seu primeiro marido]. Pelas colônias e pelos
domínios onde o sol nunca se punha com o Major Belcher [1871-1949, líder
do ‘Grand Tour’ realizado para promover a ‘British Empire Exhibition’
nos anos 1920]. A inesquecível viagem no Expresso do Oriente, a partir
da qual o Oriente Médio tornou-se um território familiar. Lua de mel com
Max Mallowan [1904-1978, o grande arqueólogo e seu segundo marido] em
Veneza, na Iugoslávia e na Grécia. Férias na Alemanha, na Áustria, na
Suíça. Visitas à Índia, ao Paquistão e ao Ceilão. No fim da vida, a
muito almejada e tanto adiada viagem às Índias Ocidentais”.
Muitíssimo disso, claro, foi transposto para os seus romances.
De minha parte, de uma variada lista, destaco três títulos nos quais
essas “andanças” da minha amiga por outras culturas nos encantam quase
tanto quanto a trama detetivesca em si: “Murder on the Orient Express”
(“Assassinato no Expresso do Oriente”, 1934), “Murder in Mesopotamia”
(“Morte na Mesopotâmia”, 1936) e “Death on the Nile” (“Morte no Nilo”,
1937). Os três títulos, não coincidentemente, são protagonizados pelo
inconfundível Hercule Poirot. E esses títulos, também não
coincidentemente, estão relacionados, com algumas alusões recíprocas,
como veremos a seguir.
Por exemplo, em “Murder on the Orient
Express” (1934) a estória começa com Poirot na (hoje) triste Alepo, na
Síria, para depois chegarmos à maravilhosa Istambul, na Turquia. É dali –
da outrora Bizâncio e, depois, Constantinopla – que o nosso detetive
toma o famoso Expresso do Oriente. Aliás, nessa jornada, ele está
precisamente voltando da sua aventura em “Murder in Mesopotamia”, muito
embora, curiosamente, esse título só tenha sido publicado
posteriormente, em 1936. O resto da história, como sabemos, se passa na
Europa do leste. O famoso trem, devido a uma nevasca noturna, para no
meio dos Bálcãs. Na manhã seguinte, um dos passageiros é encontrado
morto. O crime, aliás, está relacionado com um sequestro e assassinato
acontecido ainda mais longe, nos EUA. O resto da trama, claro, eu não
vou contar. Mas já dá para ver quão interessantes eram as viagens da
minha amiga.
Já em “Murder in Mesopotamia” (1936), o título já
diz tudo. Mais uma vez com Hercule Poirot no comando, a trama é
ambientada no Iraque, em meio a uma escavação arqueológica. Aqui, os
especialistas não têm dúvida: a inspiração para a ambientação e para as
personagens da trama veio da experiência de Christie na escavação da
necrópole da antiquíssima (e bote antiga nisso) cidade de Ur, no que
hoje é o Iraque. Aliás, foi nessa expedição que a minha amiga conheceu,
em meio a outros arqueólogos britânicos, Sir Max Mallowan, que viria a
ser o seu segundo marido. Bendita escavação, para ela e para nós. Sim,
aqui a trama gira em torno do assassinato da misteriosa (e um tanto
paranoica) Louise Leidner, esposa do arqueólogo chefe da expedição. Já
ia me esquecendo desse “pequeno” detalhe.
Por derradeiro, temos
“Death on the Nile” (1937). O Nilo, não preciso dizer, é o famoso rio
que corre pelas terras dos faraós. E aqui, mais uma vez, temos prova da
relação entre os três títulos citados, quando Poirot afirma haver
aprendido uma das técnicas do seu método de investigação – a remoção de
toda matéria estranha para que se possa enxergar a verdade – em uma
expedição arqueológica na qual esteve profissionalmente (ou seja, em
“Murder in Mesopotamia”). Para mim, “Death on the Nile” é muito mais que
excelente. Aliás, não canso de assistir à versão cinematográfica deste
romance, de 1978, com direção de John Guillermin (1925-2015). O elenco é
simplesmente fantástico: Peter Ustinov, David Niven, Lois Chiles, Jane
Birkin, Maggie Smith, Angela Lansbury, Bette Davis, Mia Farrow, George
Kennedy e Jack Warden, entre outros. Adoro Peter Ustinov (1921-2004) no
papel de Poirot. Não canso de olhar para a beleza bem nascida de Lois
Chiles (1947-) no papel da jovem assassinada, a muito invejada Linnet
Ridgeway. Afinal, ela tinha tudo: juventude, beleza, dinheiro e até
inteligência. Mas talvez isso não seja uma mistura boa. Talvez seja
demais para qualquer pessoa.
Definitivamente, a minha Agatha
Christie não era uma paroquiana. Nem muito menos uma escritora que
“cantou” apenas a sua aldeia. Ela era até uma cosmopolita, muito embora,
como descreve o já citado Martin Fido, “numa forma anglocêntrica de
ser, que hoje é provavelmente apenas encontrada entre aqueles da
carreira diplomática”. Ademais, sem dúvida, suas viagens lhe deram um
razoável cabedal de conhecimento em áreas como arqueologia, geografia,
histórias clássica e contemporânea e por aí vai, que foi, para o nosso
prazer, utilizado em seus inúmeros livros.
Bom, mas como podemos
nos aproveitar das andanças de Agatha Christie? Como podemos viajar,
por tão diferentes culturas, com a Rainha do Crime?
Eu conheço duas formas. E as duas eu explicarei nas nossas próximas conversas.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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