Os humanistas (I)
Como referido no artigo da semana passada, o final do século XV
assistiu ao epílogo da chamada “Escola dos Comentaristas” (que, por sua
vez, havia sucedido, na história do direito, à “Escola dos Glosadores”).
Isso seu deu pelas mãos dos “humanistas”, como eram (e são ainda)
chamados os representantes da “Escola Culta de Jurisprudência”, que,
filhos do Renascimento, atacaram os comentaristas medievais (ditos
também “bartolistas”), censurando-lhes, entre outras coisas, a falta de
originalidade na mera repetição e/ou glosa do que haviam dito os seus
mestres Bartolo e Baldo, o emprego do método escolástico, o uso de um
latim vulgar e o desconhecimento da literatura, da história e das
instituições da Antiguidade.
Esse novo viés “humanista”, como lembra António Manuel Hespanha em
“Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações
Europa-América, 1998), está de fato associado “ao ambiente cultural,
filosófico, jurídico e social dos primórdios da Europa moderna. No plano
cultural, ele é tributário da paixão pela Antiguidade Clássica típica
do Renascimento (séculos XV e XVI); o que levava a uma crítica
contundente da literatura jurídica tradicional, estilisticamente impura e
grosseira, filosoficamente ingênua e ignorante do enquadramento
histórico dos textos com que lidava”.
Aluno de Giasone del Maino (1435-1519), tido como o último dos
comentaristas, Andrea Alciato (1492-1550) é, segundo convencionado, o
primeiro dos juristas humanistas. Nascido no Ducado de Milão, Alciato
formou-se pela prestigiada Universidade de Bolonha, onde estudou letras
clássicas. Em parte com base nesses estudos, ele procurou dar uma nova
direção ao ensino do direito. Acabou hostilizado pelos bartolistas,
emigrando para a França em 1518 para ser professor em Avignon e, depois,
em Bourges, cidade esta que acabou vendo sua universidade se tornar o
centro irradiador da nova escola. Retornou à Itália mais tarde,
lecionando em Pavia, Bolonha e Ferrara. Entre suas obras jurídicas,
destacam-se as “Adnotationes” ao Código Justiniano; na sua produção
literária e filosófica, as “Adnotationes” a Tácito. Em síntese, como
anota Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito”
(Sugestões Literárias S.A., 1968), ele “manifestava a opinião,
transformada depois na orientação básica da Escola Culta, de que o
entendimento correto das fontes do direito romano exigia do intérprete
ser não apenas jurista, mas também filósofo e historiador, devendo o
estudo da legislação ser realizado através do conhecimento das línguas,
da literatura e da organização social da Antiguidade”.
Entretanto, como explica Jean-Marie Carbasse em “Manuel
d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France –
Puf, 2017), à exceção ilustre de Alciato, os grandes mestres da Escola
Culta foram quase todos franceses (aliás, conta-se que, na Itália, os
humanistas foram ostensivamente hostilizados pelos bartolistas, tanto
que Lorenzo Valla foi, já em 1433, obrigado a deixar Pavia, assim como
fez o já citado Alciato, que, deixando seu país em 1518, foi lecionar em
Avignon e, depois, em Bourges). Entre os grandes franceses, são sempre
citados: Guillaume Budé (1467-1540), François Douaren (1509-1559),
François Baudouin (1520-1573), Hugues Doneau (1527-1591), Jaques Cujas
(1522-1590) e por aí vai. E daí o porquê da expressão “mos gallicus iura
docendi” (“maneira francesa de ensinar o direito”) para também designar
esta Escola.
Jaques Cujas, também conhecido pelo seu nome latino Cujacius, foi,
provavelmente, o maior dos juristas “humanistas” ou “eruditos”. Cujas
nasceu em Toulouse, onde privadamente ensinava direito romano. Sem
oportunidade na universidade da sua cidade natal, mas disputado por
outras instituições de ensino, Cujas foi professor em Cahors, Bourges,
Valence, Paris e Turim, entre outras paragens. Consoante Paulo Jorge de
Lima, “suas obras principais, compreendendo principalmente comentários
ao direito romano, foram: Observationes, Recitationes, Paratitla,
Tractatus ad Africanum”. Para além do direito, Cujas trabalhou com a
história, a filosofia, a literatura e as línguas antigas, “transformando
o direito romano em direito histórico, a ser estudado em suas fontes
originais e em consonância com a organização social que lhe dera
origem”. Sem dúvida, foi em Cujas que essa tendência historicista do
direito (romano, sobretudo) chegou ao ápice.
Seu principal “rival” dentre os humanistas, tanto em estatura
intelectual como na concepção ligeiramente diferente do ensino do
direito, talvez tenha sido Hughes Doneau, também referido pelo apelido
latino Donellus. Nascido em Chalon-sur-Saône, Doneau ensinou em Toulouse
e em Bourges. Todavia, como registra Paulo Jorge de Lima, “tendo
abraçado a religião protestante, viu-se obrigado a fugir quando da noite
de São Bartolomeu (1572), dirigindo-se, sucessivamente, a Genebra, a
Heidelberg, a Leyden e, por fim, a Altdorf, na Francônia, onde viveu o
restante da sua vida. Destacam-se entre os seus trabalhos os Commentarii
de Jure Civili, publicados em Nuremberg entre 1801 e 1834”. Embora
grande conhecedor das instituições e da literatura do Mundo Antigo,
Doneau adotava, se comparado com os outros humanistas, em especial com
Cujas, uma orientação mais realista e prática do direito, guardando essa
pequena herança da tradição bartolista (leia-se: dos comentaristas)
medieval.
Mas, finalmente, o que pregavam os humanistas? Quais eram os
principais postulados dessa “mos gallicus” de ensinar o direito? É
precisamente disso que trataremos no nosso papo da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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