Coisa de cinema (II)
Antes mesmo de partir para a Índia, já curioso do nosso roteiro por
lá, li no meu querido “Guia Visual Folha de São Paulo – Índia”
(PubliFolha, 2015) elogios e mais elogios à “cidade rosada” de Jaipur,
cujo centro histórico seria, entre outras coisas, um “labirinto
fascinante de bazares, palácios suntuosos e locais históricos”, onde “a
tradição coexiste com a modernidade”.
Fui lá e conferi. É mais do que isso. Parece coisa de cinema.
E eu não falo aqui do City Palace Museum, do Jantar Mantar e do
Hawa Mahal, monumentos históricos dessa cidade de marajás, sobre os
quais eu escrevi na semana passada. Falo das esquinas e das ruas de
Jaipur, do dia a dia da cidade, da vida que ali se vive, que nós, embora
de passagem, experimentamos um pouco (na medida em que isso é possível a
um turista de primeira viagem).
De fato, esse centro antigo de Jaipur – que gira ao derredor da
“Badi Chaupar” (ou Praça Grande) e do Tripolia Bazaar – é simplesmente
fantástico. Urbanisticamente, como informa o meu instrutor/guia de todas
as horas: “Pouco se mexeu na planta original das ruas e praças do
século XVIII. Das ruas principais, ramificam-se vielas de pedestres onde
artesãos modelam marionetes, joias de prata e outras peças em oficinas
minúsculas. Atrás, estão as havelis de cidadãos importantes, algumas
usadas como escola, loja e escritório. A área é um centro de atividades,
rico em aromas penetrantes e cores vibrantes, com o toque de sinos para
aumentar a cacofonia dos sons das ruas”. É isso mesmo. Um cenário de
filme de Indiana Jones.
Caminhões, carros, motos e tuc-tucs, todos muito velhos,
acotovelam-se nas ruas. Quase não há semáforos e sinais orientativos. O
som das buzinas preenche o seu dia. O trânsito parece – acho que é mesmo
– caótico. Mas não me lembro de uma batida. Eles se entendem.
Nas ruas, ruelas e lojas que formam aqueles bazares, topa-se com
uma multidão. Gente, sobretudo. Mas, aqui e acolá, macacos, cães e até
mesmo vacas sagradas. A imensa maioria é de indianos, de todas as tribos
e credos, que se misturam aos “estrangeiros”, bem-vindos ali, incluindo
os brasileiros. Os estrangeiros também compram. E mais caro,
invariavelmente.
Vende-se de tudo. Tudo mesmo. Comida de rua, por exemplo, tem aos
montes, embora eu, já ressabiado com a triste aventura na pimenta do
primeiro dia na Índia, tenha declinado de experimentar qualquer coisa.
Vende-se também muita seda, vestidos variados, cashemir e pashmina (cuja
diferença, entre uma e outra, parece estar no uso de lã de cabra ou de
carneiro), cerâmicas, os mais diversos utensílios domésticos, uma
variedade sem fim de especiarias, flores de todos tipos, bolsinhas
estampadas, pulseiras, canetas decoradas, chaveiros de elefantinhos e
quase tudo mais que você imaginar. Tive trabalho para conter despesas,
digamos, não programadas.
Para mim, tinha até um mercado de livros (vide o artigo “Os livros
da Índia”). Um lado quase inteiro da Chaura Rasta Road, dedicado ao
comércio de livros novos e usados, onde achei o meu “fornecedor”, um tal
“Shiv Book Depot”, no nº 167. Voltei com a sacola cheia de livros de
editoras e autores indianos. Tudo baratíssimo. E essas despesas já
estavam programadas.
Por derradeiro, para quem não sabe, Jaipur também é uma espécie de
capital das joias na Índia. Como registra o meu “Guia”, “sejam os
fabulosos rubis e esmeraldas dos antigos marajás e suas esposas, sejam
os requintados ornamentos exibidos por pessoas comuns, as joias fazem
parte da cultura rajastani. Até camelos, cavalos e elefantes têm
pulseiras de tornozelo e colares com design especial. Jaipur é um dos
maiores centros de fabricação de adereços da Índia, e o meenakari
(trabalho com esmalte) e o kundankari (trabalho de incrustação de pedras
preciosas) são duas técnicas tradicionais pelas quais a cidade ganhou
fama”. Parece que essa coisa na região começou desde o século XVI,
quando o marajá Man Singh I, enciumado da moda na corte Mugal, importou
para a sua corte artesãos da região de Lahore (hoje pertencente ao
Paquistão). De lá para cá, “gerações de joalheiros altamente capacitados
viveram e trabalharam ali. Jaipur atende a todos os gostos, oferecendo
desde enfeites de prata bem simples até desenhos mais sofisticados e
complicados de ouro com pedras preciosas”.
Foi nesse “templo da perdição” que nos aconteceu o fato mais
inusitado da viagem. Tomados de curiosidade pelo ouro e pelos diamantes
indianos, saímos à caça de um comércio de joias que nos foi indicado por
uma das companheiras de viagem. Enquanto eu procurava no mapa, minha
mulher segurava o celular com uma foto do cartão da dita loja. De
repente, fomos abordados por um indiano, nos chamando assertivamente e
nos colocando ao telefone com uma pessoa que falava português,
supostamente nossa companheira de viagem, conhecedora de ouro e pedras. E
foi nos “sequestrando” para a loja de joias que, segundo ele, nós
procurávamos. Seria a loja dele. Ficamos todos – éramos eu e mais três
mulheres – assustadíssimos. Um país estranho. Uma língua estranha, mesmo
que parecida com o inglês. E sermos assim identificados na multidão.
Parecia algo mal-assombrado mesmo.
De toda sorte, fã dos filmes de Steven Spielberg, decidi enfrentar a
parada, nem que essa fosse a minha “última cruzada” em “busca da arca
perdida”. Entrei sozinho no comércio, não sem antes advertir a minha
mulher e as nossas amigas que, se eu não voltasse em dois minutos,
saíssem correndo em busca de um policial ou de um Harrison Ford de
verdade que nos salvasse. Mas estava tudo bem. Nossa amiga estava lá na
loja e tinha sido ela mesmo ao telefone uns minutos antes.
Na verdade, apesar do susto, a explicação era até simples. Simples
para os padrões indianos, claro. Um outro comerciante viu no celular da
minha mulher, exposto enquanto caminhávamos, o cartão da loja de joias.
Ele avisou ao dono desta, que, por isso, correu e nos “sequestrou”.
Mesmo naquele caos do mercado, em meio à multidão de gente, tuc-tucs e
buzinaços, aqueles comerciantes monitoram os potenciais compradores.
Sobretudo os estrangeiros. Por incrível que pareça, somos todos
observados e estudados. Até mesmo um Indiana Jones de araque como eu.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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