UFRJ SOFRE O
MAIOR FURTO DE LIVROS RAROS DO BRASIL
O Estado de S.
Paulo
03 de
maio de 2017
A antiga
Biblioteca Central da Universidade do Brasil – atual Biblioteca Pedro Calmon,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que abriga raridades do tempo
do Império – foi furtada no ano passado, e agora, terminado o levantamento do
que sumiu das prateleiras, o que se descobriu é um espanto: o maior furto de
livros raros já registrado no País.
Desapareceram 303 obras raras, entre elas os 16 volumes da primeira edição dos
Sermões de padre Antônio Vieira (1610) e quase toda a Coleção Brasiliana do
acervo, composta por livros de viajantes europeus que registraram flora, fauna
e costumes do País dos séculos 17 ao 19. Sumiram preciosidades como Expédition
dans les parties centrales de l’Amérique du Sud (1850-1859), do naturalista
inglês Francis de Castelnau, com centenas de litografias pintadas à mão; e um
livro do etnógrafo alemão Thomas Koch-Grümberg, pioneiro da fotografia
antropológica, com 141 fotos de indígenas da região do Rio Japurá, na Amazônia,
retratados entre 1903 e 1905. O principal alvo foram obras com gravuras, que
costumam ser cortadas a navalha e vendidas separadas.
A suspeita é de que o furto tenha se desenrolado durante os meses de uma
reforma no prédio, em 2016. As estantes foram fechadas com bolsas de plástico
preto – e foi dentro delas que os ladrões trabalharam.
A princípio, o crime parecia pequeno. Dois criminosos – Laéssio Rodrigues de
Oliveira, de 44 anos, ex-estudante de Biblioteconomia envolvido em furtos de
livros desde 1998, e Valnique Bueno, seu comparsa – foram presos pela polícia
paulista em novembro, por furtar obras das Faculdades de Arquitetura e Direito
da Universidade de São Paulo (USP). Como havia com eles cinco raridades da
UFRJ, deu-se o alarme na Praia Vermelha. Hoje, seis meses depois, entende-se a
dimensão do crime, bem maior do que a dezena de exemplares. No mercado, pode-se
ter ideia de valores: apenas os 27 livros apontados como “mais raros” entre os
furtados valem entre R$ 380 mil e R$ 500 mil, segundo um avaliador.
“O ladrão sabia o que roubar, não pegou a esmo”, diz o delegado Marcelo Gondim,
da Delegacia de Atendimento ao Turista de São Paulo, que prendeu Laéssio e o
comparsa em novembro. “Câmeras de segurança mostram a dupla furtando a USP. Na
UFRJ não há imagens, mas o prendemos por receptação. A ligação ao furto no Rio são
os próprios livros encontrados com Laéssio e ex-libris da UFRJ jogados em uma
lixeira na casa dele.” Em março, três livros da Pedro Calmon foram recuperados
pela Receita – seguiam para Europa e tinham como remetente o CPF de Laéssio.
Atualmente, a Polícia Federal apura o crime.
Velho conhecido
Ainda sem saber do estrago na instituição carioca, quem trabalha na área
comemorou a prisão de Laéssio. Ele é velho conhecido da classe – foi condenado
pelo menos três vezes por furto de livros raros e indiciado pela mesma razão
“inúmeras vezes”, como indica uma decisão judicial. Os maiores acervos do País
já foram suas vítimas, como Biblioteca Mário de Andrade, Museu Nacional,
Biblioteca Nacional, Palácio do Itamaraty e Fundação Oswaldo Cruz, entre
outros.
A maior parte dos livros nunca foi encontrada – o índice de recuperação é 40%,
segundo Raphael Greenhalgh, da Universidade de Brasília (UnB), autor de uma
tese de doutorado sobre os maiores furtos no País, nenhum tão numeroso quanto o
da Pedro Calmon. Quando os livros retornam, é comum virem adulterados. Num
crime pelo qual Laéssio foi condenado, o furto no Museu Nacional, 14 obras
raras tiveram as ilustrações navalhadas.
Com o novo crime, o pessoal das bibliotecas voltou a analisar Laéssio – e o que
descobriram causou revolta. A vida do criminoso vai virar filme, financiado com
dinheiro público. Confissões de um Ladrão de Livros é o título do projeto,
apresentado à Agência Nacional do Cinema (Ancine) pela Boutique Filmes. A
agência autorizou captação de patrocínio de R$ 771 mil por meio da Lei do
Audiovisual. Até aqui a produtora recebeu R$ 600 mil, da Globo Filmes e do
Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O fato de um notório ladrão de acervos públicos receber apoio do governo para
ter a vida retratada em filme levou as vítimas a se unirem para protestar. A
Câmara Técnica de Segurança de Acervos do Arquivo Nacional, ligada ao
Ministério da Justiça, prepara um documento de repúdio à produção. “Parece um
escárnio. Nada contra filme sobre crimes, mas, ao autorizar patrocínio, a
Ancine chancela os danos ao patrimônio público”, afirma Marcelo Lima, da Câmara
Técnica.
A sinopse do filme também causa descontentamento. Alguns trechos: “O melhor de
tudo é que Laéssio é real, de carne e osso, e sua escalada no crime pode ser
atestada por matérias jornalísticas(…)” e “ao longo de sua caminhada, Laéssio
compôs um portfólio incalculável(…)”.
Para as vítimas, são sinais de que o filme pode glamourizar o ladrão. “Falta só
colocar nariz de palhaço nos servidores. É o fim da picada”, diz Maria José da
Silva Fernandes, diretora do centro de coleções da Biblioteca Nacional. “Não é
um Robin Hood dos livros. Ele os retira de uma instituição pública e vende a um
particular”, afirma o ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade Luiz Armando
Bagolin. “Tentei muitas vezes leis de incentivo para conservar o acervo, e
nada. Agora um ladrão da cultura nacional consegue?”, indaga José Tavares
Filho, bibliotecário responsável pelo acervo da Pedro Calmon.
A Boutique Filmes diz que a sinopse foi feita antes de a produção começar de
fato. E o resultado não será a glamourização da vida de Laéssio (mais
informações nesta pág.).
Após o furto, a UFRJ reforçou as trancas na biblioteca e está instalando novas
câmeras. Quanto a Laéssio, apareceu outra novidade no início do mês: ele já
respondia em liberdade aos casos da USP e UFRJ, mas foi preso de novo, no Rio,
condenado pela Justiça Federal pelo furto ao Museu Nacional, em 2004. A pena é
de dez anos de cadeia, por furto qualificado com agravantes como “sério
menosprezo à memória nacional”.
Os que cuidam dessa memória celebraram um pouco, mas continuam céticos: a
sensação geral entre os bibliotecários é de que, como um deles escreveu,
“roubar livros não dá cana no Brasil”.
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