Sobre Cícero (I)
À semelhança do que fiz nas duas últimas semanas, hoje vou tratar de
mais um grande jurisconsulto romano, talvez o maior deles, pelo menos
sob o olhar multifacetado e misturado do direito, da filosofia e da
política, cuja vida e obra iluminou domínios que estão bem além das
fronteiras estritas do direito. Falo de Cícero (106-43 a.C.).
Cícero – Marco Tullio Cicero, esse era seu nome completo em latim –
nasceu em uma rica e culta família de aristocratas romanos, da ordem
“equestre”, no ano de 106 a.C., em Arpino (“Arpinium”, em latim),
pequena comuna da região do Lácio italiano, que dista pouco mais de cem
quilômetros de Roma. Desde cedo, em um ambiente culto e politizado,
Cícero foi educado na língua, na literatura, na história e na filosofia
dos gregos (o que terá uma imensa influência na composição de sua futura
obra). Aluno brilhante, no direito foi pupilo de Quinto Múcio Cévola
Áugure (falecido, provavelmente, em 88 a.C.), um dos grandes juristas de
então. Além de advogado praticante e jurista, Cícero foi poeta, orador,
historiador, estadista, filósofo político e outras coisitas mais. Foi
casado, em primeiras núpcias, com Terência, com quem teve dois filhos,
Túlia e Cícero, o jovem (que terá também seu papel na história romana,
embora bem menor que o do pai). Tinha seus defeitos – a vaidade e uma
certa hipocrisia entre eles, certamente –, como todo grande homem os
tem. Foi vítima de um assassinato político, sob as ordens de Marco
Antônio (83-31 a.C.) e com o consentimento de Otaviano (63 a.C.-14
d.C.), em 43 a.C.
A vida pública de Cícero – que transcorreu em
tempos difíceis, entremeados de ditaduras, revoluções e guerras civis –
foi riquíssima, sendo quase impossível resumi-la aqui. Seu primeiro
cargo público parece ter sido o de questor (uma função administrativa,
com a responsabilidade de cobrar impostos, que não fazia parte da alta
hierarquia burocrática de então). Embora não vocacionado nesse aspecto,
serviu militarmente sob os comandos de Pompeu Estrabão (135-87 a.C.) e
Sula (138-78 a.C.). Iniciou sua brilhante carreira de advogado
provavelmente no início dos anos 80 a.C. Partiu para um primeiro período
de exílio durante a ditadura de Sula. Voltou à cena política romana com
a morte do ditador. Em 63 a.C., foi eleito cônsul, exercendo esse mais
alto cargo da hierarquia política romana com grande destaque. Durante
seu consulado, reprimiu a conspiração, contra a República e contra ele
próprio, liderada por Catilina (108-62 a.C., objeto das “Catilinárias”,
conjunto de discursos que será adiante referido). Ficou de fora da
aliança entabulada por Crasso (114-62 a.C.), Pompeu Magno (106-48 a.C.) e
Júlio César (100-44 a.C.), conhecida como o “Primeiro Triunvirato”,
quando poderia ter sido, se não tivesse recusado, o “quarto”
cogovernante. Restou ao lado de Pompeu na guerra civil contra Júlio
César. Apoiou Marco Júnio Bruto (85-42 a.C.) na sua conspiração contra
Júlio César. Foi o principal opositor de Marco Antônio. Padeceu, de modo
cruel e humilhante (teve sua cabeça arrancada para exibição pública), a
mando de Antônio, que, à época, dividia o poder com o jovem Otaviano (e
com Lépido), no que restou conhecido como o “Segundo Triunvirato”.
Cícero é autor de inúmeros discursos e textos, mais do que qualquer
outro autor latino, que chegaram até nós (coisa de uma centena,
acredito). Suas perorações como advogado em defesa dos seus clientes,
seus discursos políticos, seus escritos político-filosóficos e
jurídicos, suas frases lapidares, passados mais de dois milênios da sua
passagem fulgurante pela vida pública, são admiradas e repetidas até
hoje. Entre seus discursos estão exemplos de retórica como “In
Catilinam” (as famosas “Catilinárias”, contra Lucius Sergius Catilina,
de 63 a.C.), as “Philippicae”, (ou “Filípicas”, contra Marco Antônio, de
44-43 A.C.) e até uma tal de “Pro Marcello” (“Em Defesa de Marcelo”, de
46 a.C.), que nunca tinha ouvido falar, mas desde já asseguro: Marcelo
tinha toda razão. São também vários os tratados – sobre direito,
filosofia, oratória, história e por aí vai – escritos por Cícero, tais
como “De Oratore” (“Sobre o Orador”, de 55 a.C.), “De Re Publica”
(“Sobre a República”, de 51 a.C.), “Brutos” (“Bruto”, de 46 a.C.) e “De
Legibus” (“Sobre as Leis”, provavelmente de 52-51 a.C., possivelmente
atualizado entre 45 a 43 a.C.). Isso sem falar nas suas cartas,
direcionadas a figuras públicas – Pompeu Magno, Júlio César e Otaviano,
apenas para dar alguns exemplos – e privadas, que são um dos mais
confiáveis testemunhos sobre aquele período conturbadíssimo da história
romana.
Desses títulos, por uma questão pessoal, vou destacar um:
“De Legibus” ou “Sobre as Leis”, cuja redação provavelmente se deu nos
anos de 52-51 a.C., mas que foi possivelmente retocado, pouco antes da
morte do autor, entre 45 a 43 a.C. Sobre essa obra (que tem título e
conteúdo perfeitamente ajustados ao direito em sentido estrito) e sobre o
legado de Cícero para a ciência jurídica e para a filosofia política de
modo mais amplo, doravante, resumidamente, escreverei. Mas isso, por
manifesta falta de espaço aqui, será feito apenas na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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