Sobre Cícero (II)
No artigo da semana passada, fiz referência a algumas das
muitíssimas obras de Cícero (106-43 a.C.) que chegaram até nós (nesse
ponto, como também ali referido, ele bate qualquer outro autor latino):
“In Catilinam” (de 63 a.C.), as “Philippicae” (44-43 A.C.), “De Oratore”
(55 a.C.), “De Re Publica” (51 a.C.), “Brutos” (46 a.C.), “De Legibus”
(provavelmente de 52-51 a.C., possivelmente atualizado entre 45 a 43
a.C.) e por aí vai. Na ocasião, para o artigo de hoje, prometi duas
coisas: (i) desses incontáveis títulos, até como sugestão de leitura,
destacar um deles, especificamente o tratado “De Legibus” ou “Sobre as
Leis”, cuja redação provavelmente se deu nos anos de 52-51 a.C., mas que
foi possivelmente retocado, pouco antes da morte do autor, entre 45 a
43 a.C.; (ii) tratar do legado deixado por Cícero, a partir da sua
multifacetada obra, para a ciência jurídica e para a filosofia política
como um todo.
E se da obra de Cícero, para futura leitura, destaco o seu tratado
“Sobre as Leis”, o faço por algumas boas razões. Primeiramente, porque
“De Legibus”, se comparado com outras obras ensaísticas de Cícero, a
exemplo do seu tratado “Sobre a República” (“De Re Publica”), parece ser
pouco conhecido (e menos ainda estudado) pelos amantes das letras
latinas. Em segundo lugar, porque “De Legibus”, até pelo que dá a
entender o seu título, tem sua forma (é composto de diálogos) e
sobretudo seu conteúdo perfeitamente vocacionados ao direito,
especialmente à filosofia do direito, à história do direito e ao direito
constitucional, talvez mais do que qualquer outra obra conhecida do
grande escritor/pensador romano. Em terceiro lugar, para além da
elegância do estilo empregado pelo autor em seu texto, o faço pela
importância e qualidade do conteúdo de “De Legibus”. Como dito na
contracapa de uma edição espanhola da obra, a que vou me reportar a
seguir, o tratado “Sobre as Leis”, composto no final de vida de Cícero,
depois de tantas vicissitudes passadas pelo autor, é seguramente “um dos
grandes textos sobre o direito natural, em que se combinam as tradições
filosóficas platônicas, estoicas e peripatéticas, sublinhando que o
espírito do direito é a razão divina e que a lei suprema é o amor
universal pelo gênero humano. Dividido o tratado em três livros, o
primeiro trata da lei em geral, tal com havia concebido o pensamento
grego; o segundo se refere principalmente às leis concretas romanas,
fundadas nas crenças religiosas deve povo; e o terceiro expõe as leis
políticas que regiam a Constituição romana”. Em quarto lugar, porque,
dia desses, em São Paulo, garimpando naqueles sebos ao derredor da
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, infelizmente já raros em
tempos de comércio eletrônico, caiu em minhas mãos, após quase duas
horas de prosa com o proprietário do comércio de livros seminovos, uma
maravilhosa edição espanhola de bolso do livro de Cícero: “Las Leyes”,
publicada pela Alianza Editorial de Madrid, com introdução e notas de
Roger Labrousse, em 1989. Livro ainda novinho, com o selo da saudosa
livraria LAEL, que outrora, pelo menos no tempo que em fiz mestrado na
Pauliceia, por aquelas bandas (em edifício comercial na Rua Riachuelo,
nos fundos da Faculdade de Direito, se bem me lembro), praticamente
sozinha, importava e vendia livros jurídicos nas mais diferentes
línguas. E essa edição de “Las Leyes” eu estou agora mesmo folheando,
lendo e, melhor, adorando.
No mais, poeta, orador, historiador, estadista, filósofo político,
jurista, advogado praticante e outras coisitas mais, o polímata Cícero –
sem dúvida, um dos mais celebrados escritores e pensadores de todos aos
tempos – nos deixou, para bem além da elegância do seu estilo, oral e
escrito, especificamente no que toca ao direito, inúmeros legados
concretos.
Um deles consiste, como lembra Robert Hockett (em “Little Book of
Big Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), no fato de
haver Cícero sistematicamente traduzido “para o latim muito da filosofia
estoica grega que ele tanto amava, dando grande atenção a princípios
básicos de justiça que devem reger as relações humanas, o que serviu,
ainda, para forjar todo um novo vocabulário filosófico latino”. E com
toda essa base filosófica, Cícero, praticamente sozinho, “filosofou” o
direito romano.
Deve-se também a Cícero vários princípios ou mesmo uma doutrina da
justiça que, mais tarde desenvolvidos/reelaborados pelos “Padres da
Igreja” – muitos deles, a exemplo de São Jerônimo (347-420) e de Santo
Agostinho (354-430), grandes admiradores de Cícero, que foi até
declarado “pagão justo” –, dariam corpo à doutrina do direito natural do
Medievo.
E tão importante quanto os dois legados já referidos também é o fato
de Cícero – conhecedor dos arranjos políticos que uma vez funcionaram
em Roma, mas que foram vilipendiados por episódios de guerra civil e
ditadura – haver desenvolvido uma original teoria do republicanismo
romano, fundamentada na liberdade, na limitação do governo e numa
razoável separação de poderes entre o Executivo e Legislativo. Buscando
restaurar esse “glorioso” passado republicado, ele produziu e felizmente
nos legou – uma vez redescoberto no Renascimento e muito admirado pelos
humanistas e iluministas – princípios que, direta ou indiretamente,
entre outras coisas, influenciaram revoluções políticas na Europa e nas
Américas, assim com a elaboração e o conteúdo de constituições de vários
países desde o século XVIII até os dias de hoje.
Bom, sem espaço para relacionar todos os legados de Cícero, para
encerrar este riscado vai apenas uma observação. De minha parte, para o
final de semana, já tenho uma programação: ler um pouco mais da minha
edição de “Las Leyes” de Cícero, que eu, ciumento, aviso logo, pelo
menos por enquanto, não empresto de jeito algum.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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