O legislador espartano
Na semana passada, como alguns de vocês devem lembrar, conversamos
aqui sobre Sólon (638-558 a.C., aproximadamente), o grande estadista e
magistrado ateniense que, no ano de 595 a.C., forjou um novo e perene
direito para essa cidade-estado grega.
Hoje trataremos de uma outra personagem da Grécia antiga, desta
feita quase lendária, mas também fundamental para a construção, ao menos
mitológica, do direito de então: Licurgo de Esparta.
Atenas e Esparta, como sabemos, rivalizaram, durante um bom período
da história antiga, como as duas principais cidades-estados da Grécia.
Dessa rivalidade até resultou a famosa “Guerra do Peloponeso”, que durou
de 431 a 404 a.C. (intercalada com intervalos de paz), tão bem
retratada por Tucídides (430-355 a.C.) e Xenofonte (430-355 a.C.), na
“História da Guerra do Peloponeso” e nas “Helênicas”, respectivamente. E
Licurgo está para Esparta, em termos de importância, sobretudo para o
seu direito, como Sólon está para Atenas.
Pouquíssimo se sabe com segurança sobre a vida Licurgo de Esparta.
Segundo reza a lenda – e aqui me fio apenas no que li em Plutarco
(45-120), em “Vida de Licurgo”, que faz parte das clássicas “Vidas
Paralelas” –, ele nasceu antes da “Primeira Olimpíada”, que, por sua
vez, segundo aponta a história, se deu em 756 a.C. Mas o próprio
Plutarco confessa, para além da incerteza sobre se Licurgo de fato
existiu ou é uma criação mitológica, a existência de muitas versões
contraditórias sobre a “vida” dessa personalidade. Diz-se que Ligurgo –
partindo do pressuposto de que ele tenha de fato existido – chegou ao
trono de Esparta com o falecimento do seu irmão mais velho, o rei
Polidectes, mas espontaneamente renunciou ao poder em prol do seu
sobrinho, Carilau, quando do nascimento deste, que ainda estava na
barriga da mãe quando do falecimento do rei/seu pai. Isso fez a fama de
Licurgo como homem justo, ao mesmo tempo que guardião do pequeno rei de
Esparta (Carilau), o que, por outro lado, causou a inveja e oposição de
alguns. Com tempo, temendo ser acusado de traição, Licurgo partiu em
autoexílio. Viajou muito, alegadamente por Creta, pela Jônia e até pelo
Egito. Aprendeu outro tanto. Até que foi chamando de volta pelos
espartanos, que enxergavam nele a realeza (de fato) e o dom para
governar e ser obedecido, assim como um ponto de equilíbrio entre os
reis de Esparta e a população em geral.
No que toca ao direito, deve ser primeiramente registrado que a
legislação forjada por Licurgo para Esparta não era, segundo reza a
lenda, de sua própria autoria. Pelo contrário, essa legislação teria lhe
sido entregue/revelada pelo famoso “Oráculo de Delfos”, como destinada a
reger a vida do povo de Esparta. Em geral, são leis que revelam
costumes antigos do povo da região. E, para além do caráter místico de
algumas delas, as “leis de Licurgo” revelam o desejo de retorno, com a
exigência do seu estrito cumprimento, à disciplina civil e à segurança
de saudosos tempos passados.
Boa parte do direito forjado/revelado por Ligurgo chegou até nós
fragmentado e por meio de aforismos. Nos seus provérbios, Licurgo
combate a desigualdade social de então. Ele reprime a avidez. Combate
ferozmente a luxuria. Enaltece a liberdade. Prega o respeito aos mais
velhos. Venera a tradição do seu povo, respeitando o que lhe é sagrado.
E, sobretudo, reafirma constantemente a necessidade de se cumprirem as
leis.
Concretamente, talvez a mais importante contribuição de Licurgo para
o direito, especialmente para o direito constitucional, tenha sido a
criação da “Gerúsia”, o conselho de anciãos espartano, composto de 28
homens sábios maiores de 60 anos e dos dois reis de Esparta. A Gerúsia
rivalizava em poder com os reis espartanos e era, além do órgão
responsável por direcionar/avalizar as políticas públicas necessárias, a
suprema corte da cidade-estado. De uma Esparta que oscilava entre a
democracia e a tirania, a anarquia e a ditadura, chegou-se, por
intermédio de Licurgo, à aristocracia, ou seja, ao “governo dos
melhores” (que muitos opõem à democracia ateniense).
Muito famosa também é a severa (e, talvez por isso mesmo,
controvertida) educação dos jovens em tenra idade, com internato e
progressivo preparo para servir ao exército de Esparta, empreendida por
Licurgo. E atribui-se a Licurgo, em grandíssima medida, parcialmente em
virtude da sua “lei da educação”, não só o enorme desenvolvimento
jurídico e político de Esparta, mas também, dado a excelência e os
frutos dessa legislação, o crescimento econômico e, sobretudo, bélico
dessa cidade-estado, que se tornou uma das mais poderosas do Peloponeso.
No mais, para se ter uma ideia do legado desse lendário legislador, a
Esparta de Licurgo, como anota Robert Hockett (em “Little Book of Big
Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), “tornou-se objeto
de fascínio para muitos pensadores políticos e filósofos utopistas
subsequentes, incluindo Platão, cuja 'República' foi parcialmente
modelada com base nela. O mesmo pode ser dito sobre muitos pensadores
romanos e subsequentes líderes de nações militarizadas”.
Por fim, reza a lenda sobre a vida de Licurgo que, ao finalizar a
sua “fundante” revolução legislativa, conhecedor das inconstâncias dos
homens e da política, ele pediu aos reis de Esparta que qualquer
posterior alteração de sua legislação só fosse empreendida com o seu
aval pessoal. Obtendo o assentimento real, Licurgo pediu (e novamente
foi atendido) para ser condenado ao ostracismo/exílio, na esperança de
que sua legislação sobrevivesse, a partir da invenção dessa inusitada
“cláusula pétrea”, tanto aos outros homens como a ele mesmo. Enxergando
as inconstâncias jurídicas de hoje – no Brasil, na Terra da Rainha e
mundo afora –, achei muito sábio esse tal de Licurgo.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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30/06/2016
Marcelo Alves
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