Os cafés e a festa
Posso dizer que dois livros me fizeram passar temporadas fora do Brasil. Um deles foi “Amor a Roma” (1982), do nosso Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), sobre o qual até já escrevi. O outro foi “Paris é uma festa” (“A Moveable Feast”, 1964), de Ernest Hemingway (1899-1961). Os respectivos títulos já informam sobre quais cidades estamos falando.
Ernest Hemingway, americano, prêmio nobel de literatura em 1954, é autor de textos clássicos. Contos e romances eram sua especialidade. Esportista, namorador, expatriado, membro da chamada “geração perdida”, infelizmente acabou tirando a própria vida em 1961. “Paris é uma festa” é um livro de memórias. Foi escrito no fim dos anos 1950 para o começo dos 1960, em estadas do autor em Cuba, na Espanha e em Idaho/EUA. Mas são memórias sobre uma Paris dos anos 1920, quando muitos escritores norte-americanos, com o dólar favorável, conseguiram ali viver “confortavelmente”. Hemingway, Gertrude Stein (1874-1946), Erza Pound (1885-1972), F. Scott Fitzgerald (1896-1940) e outros menos votados. Juntos e misturados.
Em 2006, com “Paris é uma festa” na cabeça, eu parti para a França. Na terrinha, havia deixado coisas inacabadas, que perturbavam a minha paz. A ideia era passar uns três ou quatro meses longe delas. Logo tomei quarto num pequeno hotel na Rue Madame, em Saint-Germain-des-Prés. No meu tempo, o estabelecimento era muito simples, quase uma pensão. Voltei lá para dar uma espiada faz uns dois anos. Está remodelado e chique. Chama-se agora La Villa Madame e não é mais coisa para estudante. Matriculei-me também na Alliance Française Paris Ile-de-France, que fica no número 101 do Boulevard Raspail, nas abas do bairro de Montparnasse, muitíssimo perto de onde eu estava morando. Foi uma das mais acertadas decisões que tomei. Essa Aliança de Paris, mais do que uma escola, é um espaço cultural fantástico. E, deixando todas as minhas preocupações no Brasil, aqueles meses sabáticos foram uma verdadeira catarse.
Estou quase certo de que a minha paixão – ou vício, já que devo coisas a Deus e ao diabo – por café e cafés começou naquela época. Paixão à la Hemingway, que também virou um habitué dos cafés de Paris. Como anota Jessica Powell, em “Literary Paris: a Guide” (The Little Bookroom, 2006), sobre o autor de “Paris é uma festa”: “La Closerie des Lilas e Le Dôme estavam entre os seus favoritos, mas havia também o Dingo Bar (então no número 10 da rua Delambre), onde ele pela primeira vez encontrou-se com F. Scott Fitzgerald, e Le Falstaff (42, rua do Montparnasse), que ainda serve comida inglesa e bebidas. A Brasserie Lipp (151, boulevard do Saint-Germain) era boa para cerveja e comida alsaciana, e Les Deux-Magots para um café crème com James Joyce. (…). Mesas de cafés frequentemente serviam como sua escrivaninha, e ocasionalmente são retratadas nos seus trabalhos. O Café de la Paix (ainda no número 5, praça de l'Opéra) foi o pano de fundo para o seu conto My Old Man, enquanto o Dingo Bar serviu de cenário para A Sea Change. E, em The Sun Also Rise, a personagem Jack alega: ‘partindo da margem direita do rio, não importa para qual café em Montparnasse você peça ao taxista para lhe deixar, ele sempre vai levar você para o Rotonde’”.
Assim como Hemingway, eu frequentei os cafés do Boulevard Montparnasse e, sobretudo, os do Boulevard Saint-Germain, sempre vendo a rua passar. Escrevi quase nada. Mas bebi muito. Café, vinho e outras coisas mais, embora não quisesse fazer parte de geração perdida alguma. Coisas inusitadas aconteceram, claro. A bela e elegante dama de Bilbao, casada, que sempre insistia em me pagar um vinho no Les Deux-Magots. Ainda hoje me pergunto o que ela queria a mais com aquilo. E havia, também, as garotas de Chicago, fãs de jazz e leitoras de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Tirando a chatice do filósofo, elas eram divertidíssimas, podem ter certeza. Mas isso são outras histórias, que nem sei se devo contar aqui.
De toda sorte, há uma frase mais que famosa de Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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