PRAIEIRA (96 ANOS)
Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com
Muitos já cantaram e
falaram sobre “Serenata do Pescador”, composição imortal de Othoniel Menezes e
musicada por Eduardo Medeiros que atravessou o tempo e o vento com a mesma
beleza sonora e poética. A pesquisadora Leide Câmara reuniu a melhor geração de
intérpretes norte-riograndenses que gravaram a composição, uma estrofe cada um,
pela primeira vez em estúdio. Se os estilos de cantar de cada um são distintos,
pelo timbre de voz, a inflexão, a entonação dos versos, é inegável a
intensidade e a paixão de todos na interpretação, como se estivessem vivendo a
fascinação do pescador ante o permanente e o efêmero da aventura marítima.
Esse poema musicado de
1923 alcançou a força de uma obra prima e se tornou hoje a canção tradicional
de Natal pelo paladar do povo. Nem precisaria a eficácia de um decreto oficial.
Lembro a noite de lançamento que se realizou no Palácio da Cultura (80 anos),
onde a confrade Leide Câmara, fiel porta-estandarte da música potiguar, reuniu
centenas de natalenses de boa vontade que não deixam cair a bandeira, a riqueza
e a beleza do talento dos nossos músicos e intérpretes. O disco teve a capa do
imortal Dorian Gray e a apresentação de vários expoentes da nossa cultura. Fui
presente e me senti feliz por prestigiar o evento, passageiro do batel naquela
noite de navegação e delicadeza aquática.
Tratou-se de um
acontecimento que fala a alma e o coração de Natal e precisava repercutir por
que não é fugaz e frívolo como o carnatal. Vivemos numa cidade que lança livros
que não se lêem, línguas que não se aprendem (exceção para aquelas ferinas), amor
que não se dá, a não ser aqueles movidos à álcool e as drogas, próprios da
folia doidivana onde tudo depois é esquecido. Província que desfila vaidade nas
crônicas e só veste abadás nas passarelas. Natal precisa saber quem é e a que
veio. Carnatal não é cultura. Mas, sim dinheiro, ganância, transitoriedade e
consumo de carne. Por que não prestigiar o autor, o músico, a música e o cantor
norte-rio-grandense? Só pensam em lucro fácil e fáctil. Todo folião que se
despedaça no carnatal não retorna mais inteiro. Perdem a identidade assim como
Natal perde, a cada ano, a sua cara e a própria identidade cultural.
Por isso cultuo o “pão
cotidiano” das coisas nossas sem deixar de me preocupar com o poente apagado do
Potengi amado, outrora tão aceso e contemplado por Câmara Cascudo que sempre
valorizou os temas, as criações, os autores e o patrimônio da cultura do Rio
Grande do Norte. O mundo ainda não acabou por causa de dez por cento de
cristãos de fé e penitência de todas as religiões do planeta. E a música
potiguar brasileira não se exauriu ainda por que existem figuras como Leide
Câmara e todos os doze intérpretes de Praieira, além dos seis músicos, somados às
dezenas de outros profissionais espalhados pelo Rio Grande do Norte que
vivificam o labor diário de compor e cantar a música genuína de nossas origens
e vertentes. Ouçamos Fernando Pessoa: “a
vida é breve, a arte é longa”.
(*)
Escritor.
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