Parlamento e tribunal
Já escrevi aqui, embora faça muito tempo, sobre a Suprema Corte do
Reino Unido (Supreme Court of the United Kingdom), criada pelo
“Constitutional Reform Act” de 2005 (com efeitos a partir de outubro de
2009) e hoje a mais alta corte de justiça da Terra da Rainha. Todavia,
por estes dias, um amigo – certamente, mais saudosista do que eu – me
perguntou o que era a tal Casa dos Lordes (House of Lords) para os fins
do sistema judicial daquele Reino.
Para quem não sabe, fazendo par com a mais badalada (e importante,
registre-se) Casa dos Comuns (House of Commons), numa espécie de
parlamento bicameral, como é o do Reino Unido, a Casa dos Lordes é hoje a
câmara alta desse Parlamento, possuindo uma porção de competências
legislativas, impossíveis de discriminar aqui. Sem um número
pré-determinado de membros, ela é hoje composta por setecentos e tantos
Lordes Parlamentares, a imensa maioria, tirando os chamados Lordes
Espirituais (bispos e arcebispos da Igreja Anglicana, que não chegam a
trinta), com funções vitalícias. É bom lembrar que seus membros não são
eleitos para um mandato, ao contrário do que se dá com a Casa dos Comuns
ou com a maioria das câmaras e senados mundo afora. Bom, parece que
eles estão satisfeitos por lá.
Também para quem não sabe, a House of Lords, ao mesmo tempo uma das
casas do Legislativo, foi, durante muito tempo (até 2009, como dito
acima), também a mais alta corte de justiça do Reino Unido. Aliás,
segundo nos lembram Mary Ann Glendon, Michel Wallace Gordon e
Christopher Ossakwe (em “Comparative Law Traditions in a Nutshell”, West
Publishing Co., 1982), “a função judicial da House of Lords antecede
[melhor dizendo, antecedia] a sua função legislativa”.
Entretanto, como eu já disse aqui mesmo, tão-somente em teoria os
processos judiciais, tanto de sua competência originária quanto da
recursal, eram apreciados pela Casa dos Lordes como um todo. Na prática,
os nobres leigos não participavam das sessões judiciais da Casa, e os
processos judiciais eram realmente apreciados e decididos pelo
denominado “Appellate Committee of the House of Lords”, de fato
competente para o exercício da função jurisdicional da Casa e formado
apenas por profissionais do direito. O tal “Appellate Committee” era
constituído pelo “Lord Chancellor”, seu presidente, e pelos “lords of
appeal in Ordinary”, chamados “Law Lords”. Os “Law Lords” eram
escolhidos por nomeação direta dentre os “barristers” (categoria de
advogado existente no Reino Unido, juntamente com os “solicitors”) mais
eminentes ou por promoção de um juiz, geralmente da chamada Corte de
Apelação (Court of Appeal), corte imediatamente inferior na hierarquia.
Uma vantagem de ser “Law Lord” era, evidentemente, a qualidade de nobre.
O “Appellate Committee” detinha competência tanto civil como criminal e
predominantemente recursal, conhecendo, no que toca à Inglaterra, por
exemplo, sobretudo de recursos provenientes de decisões da Court of
Appeal e, excepcionalmente, pelo denominado “procedimento de salto”, da
Alta Corte de Justiça (High Court of Justice). Evidentemente, as
decisões da House of Lords, salvo raríssimas exceções, eram obrigatórias
para todas as demais cortes do Reino. Isso decorria naturalmente da sua
posição de mais alta corte e da existência da doutrina dos precedentes
obrigatórios no Reino Unido.
Bom, até o mais conservador dos conservadores há de rever suas
tradições quando o panorama da sociedade, espontaneamente ou por pressão
externa, impõe mudanças que não podem ser adiadas. As pressões externas
vieram; o panorama mudou. O objetivo principal do fim das funções
judiciais da Casa dos Lordes (mais concretamente da abolição do
“Appellate Committee of the House of Lords”) e da criação da Supreme
Court of the United Kingdom resta evidente das discussões previamente
empreendidas pelas instituições envolvidas: atribuir a órgãos distintos
as funções legislativa e judicial do Reino Unido, em clara homenagem ao
princípio da separação dos poderes e ao preconizado na Convenção
Europeia de Direitos Humanos. O fato é que, após relevantes serviços,
por disposição do já citado “Constitutional Reform Act 2005”, a House of
Lords deixou oficialmente de funcionar, como a mais alta corte de
justiça do Reino Unido, em setembro de 2009.
E que se conforme o meu amigo saudosista!
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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