O direito na linguagem do cinema (I)
Já disse aqui certa vez, na esteira do jurista belga Bruno Dayez
(autor de “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), que o direito
“é um dos temas favoritos do cinema”.
As razões para tanto, disse também à época, são muitas. As questões
judiciais muitas vezes envolvem dinheiro, violência, sexo, o que,
sabemos, é sempre algo interessante de se explorar no cinema. O crime em
si, do mais banal ao mais grave, normalmente chama a nossa atenção.
Muitas vezes, a própria perversidade do crime praticado ou o
envolvimento de pessoas ilustres no fato, por exemplo, já são o
suficiente para, sem o acréscimo de qualquer recurso dramático,
emprestar qualidade e interesse a um filme. A personalidade do
criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do crime,
constitui-se geralmente em excelente matéria prima para a ficção. A
competência e a teatralidade dos operadores do direito – policiais,
juízes, jurados, promotores e, sobretudo, advogados – é fascinante. A
atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao
mesmo tempo encantadora. A “mise en scène” do processo penal, em alguns
casos, assemelha-se a uma tragédia grega. A busca pela justiça, que é
uma busca pela verdade, sempre envolve um suspense. Até mesmo a execução
da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é
marcadamente perversa para invariavelmente prender nossa atenção. E por
aí vai.
Exemplos de “filmes jurídicos” (conhecidos em inglês como “legal
films”) – filmes cujos enredos, de uma forma ou de outra, têm
considerável ligação com o direito – abundam. E, embora sejam estes mais
específicos, os exemplos de “filmes de tribunal” (os “trial movies”,
“trial films” ou “courtroom dramas”) – filmes cujos enredos se passam
perante uma corte de justiça em pleno funcionamento, com advogados,
promotores e juízes realizando suas performáticas peripécias jurídicas –
também são muitos. Eu mesmo já escrevi sobre alguns deles aqui, tais
como “Doze Homens e uma Sentença” (“12 Angry Men”, de 1957, dirigido por
Sidney Lumet e com Henry Fonda no papel do jurado que, no confinamento
da sala secreta, obstando a unanimidade, consegue convencer os demais
onze jurados para fins de absolvição do jovem réu), “Testemunha de
Acusação” (“Witness for the Prosecution”, de 1957, talvez o melhor dos
“courtroom dramas”, dirigido por Billy Wilder e baseado em peça homônima
de Agatha Christie), “Anatomia de um Crime” (“Anatomy of a Murder”, de
1959, filme de Otto Preminger, estrelado pelo queridíssimo James Stuart
no papel de um advogado que consegue a simpatia de todos nós), “O Vento
Será Tua Herança” (“Inherit the Wind”, de 1960, com Spencer Tracy,
Fredric March e Gene Kelly nos papéis principais, e que põe na tela
grande, com doses de ficção, o famoso “O Julgamento do Macaco”, ocorrido
nos EUA), “O Julgamento de Nuremberg” (“Judgment at Nuremberg”, de
1961, vencedor de 11 Oscars, cheio de estrelas e cujo enredo gira em
torno do julgamento, pelos aliados, de juristas alemães que ocuparam
posições importantes no aparelho judicial durante o período nazista) e
“O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”, de 1962, baseado no
romance homônimo, vencedor do prêmio Pulitzer, de Harper Lee, no qual
Gregory Peck faz o papel de Atticus Finch, provavelmente o mais admirado
advogado da história do cinema). São todos, hoje, clássicos da sétima
arte.
Mas é realmente o cinema uma linguagem adequada para o tratamento
sério do direito? É minimamente seguro embarcar nessa tendência ou moda
(diriam alguns mais críticos) da interdisciplinaridade, aqui entendida
como a interação, nos mais diversos níveis de complexidade
(multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade em
sentido estrito e transdisciplinaridade), entre o direito e o cinema,
visando à compreensão (e até mesmo ao aperfeiçoamento) daquele através
da linguagem deste? Valem a pena experiências como o CineLegis, do curso
de direito da nossa Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a
exemplo de outras iniciativas que pipocam nas academias país afora,
visando estudar o direito através da linguagem do cinema?
Embora eu saiba muito bem que os filmes “jurídicos”, incluindo os
clássicos acima citados, são majoritariamente peças de ficção, que podem
às vezes levar a visões equivocadas sobre a realidade do sistema legal
que buscam retratar (afinal, insisto, eles são essencialmente obras de
ficção), sempre defendi que sim. Aliás, à semelhança do que faço em
relação ao estudo de direito através da literatura. Os que me leem aqui,
sem serem forçados a uma colaboração premiada, podem testemunhar isso.
Agora – quer pelas ideias que eu já tinha da coisa toda, mas
especialmente porque acaba de me cair em mãos um livro maravilhoso, que
aborda indiretamente o tema, chamado “O cinema pensa: uma introdução à
filosofia através dos filmes”, de Julio Cabrera, Editora Rocco, 2006 –
estou mais certo disso.
E, em sendo assim, tanto sobre as minhas antigas ideias acerca da
viabilidade do estudo do direito através do cinema como sobre tal livro
“O cinema pensa”, conversaremos mais detalhadamente na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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