Eficácia temporal dos precedentes na Inglaterra
Nas duas últimas semanas, focando especificamente o direito dos
Estados Unidos da América, escrevi aqui sobre a eficácia temporal –
retroativa ou prospectiva – da decisão judicial que anuncia um novo
direito, “revogando” (ou ao menos modificando) anterior regra de
orientação diversa.
Hoje vou dar um ponto final nesse assunto – da eficácia temporal dos
precedentes – explicando, em linhas gerais (obviamente), como a coisa
se dá na Inglaterra.
A visão tradicional inglesa – que encampa a tese da aplicação
retroativa clássica do precedente judicial revogador – pode ser
explicada, como o faz Michael Zander em “The Law-Making Process”
(Editora Butterworths, 1999), da seguinte forma: “Quando uma corte
profere uma regra que é concebida para mudar o direito, o efeito não é
somente para o futuro. Também afeta o passado. Isso por causa da ficção
de que, quando estabelece o direito, uma corte está estabelecendo o
direito como ele sempre foi”. Evidentemente, conclui o mesmo autor, “se o
caso já foi questionado em juízo, não pode ser reaberto. Está sujeito
ao princípio expresso na expressão res judicata. Igualmente, se o tempo
permitido sob o Statute of Limitations [que trata, basicamente, do que
aqui chamamos de prescrição e decadência] para apresentar processos
desse tipo expirou, nenhum caso pode agora ser apresentado sob o
fundamento de mudança na regra. Mas se nem a res judicata nem o Statute
of Limitations se aplicam, uma ação pode ser apresentada para atingir
fatos que ocorreram antes das novas decisões”.
Todavia, os tribunais ingleses, vez ou por outra, inspirados no
exemplo americano e fugindo da sua orientação clássica (de aplicação
retroativa do precedente), têm aplicado – ou, ao menos, discutido a
hipótese de aplicar – prospectivamente, o precedente revogador.
No campo do direito administrativo, sobretudo quando se trata de
concessão dos chamados “remédios” administrativos em prol dos
administrados, informa o mesmo Michael Zander, têm as cortes inglesas
dado efeitos prospectivos ao precedente revogador, para evitar um
inadmissível caos administrativo.
Outrossim – e isso é muito importante – em pelo menos dois casos
relativamente recentes (recentes para a multisecular Inglaterra,
frise-se), Jones v. Secretary of State for Social Services [1972] AC 944
e Miliangos v. George Frank (textiles) Ltd [1976] AC 443, Lord Simon of
Glaisdale, na antiga House of Lords (hoje substituida pela Supreme
Court of the United Kingdom), considerou, positivamente, uma aplicação
prospectiva dos precedentes mais ampla, à moda do direito
norte-americano, afirmando, no primeiro deles, o seguinte: “Restou-me a
sensação de que, teoricamente, de alguma forma, o resultado mais
satisfatório para estas apelações seria tê-las permitido sob fundamento
de que elas foram governadas pela decisão do caso Dowling, mas ter por
revogada esta decisão prospectivamente. Tal poder – de rejeitar
prospectivamente uma decisão anterior, mas de forma que não afete
necessariamente as partes perante a corte – é exercitável pela Supreme
Court of the United States, que o considerou como fundamentado no common
law: veja-se Linkletter v. Walker (1965) 381 U.S. 618. (...) a
verdadeira, mesmo que limitada, natureza da elaboração judicial do
direito tem sido mais amplamente reconhecida em anos recentes; e a
declaração de 20 de julho de 1966 pode ser parcialmente considerada como
uma parte desse processo. Poderia ser argumentado que um passo
adicional, para investir Suas Excelências com os poderes mais amplos e
flexíveis da Supreme Court of the United States, não seria mais do que
uma extensão lógica das realidades atuais e dos poderes já
estabelecidos, sem provocar objeções de outros órgãos constitucionais.
Mas minha própria opinião é que, embora tal extensão devesse ser
seriamente considerada, seria preferivelmente matéria sujeita à decisão
do Parlamento. Em primeiro lugar, a opinião mais conhecida dos
operadores do direito é no sentido de que Suas Excelências não têm poder
para revogar decisões com efeito prospectivo apenas; tal opinião é ela
mesma uma fonte de direito; e Suas Excelências, ao se reunirem
judicialmente, estão obrigados pelo direito a evitar qualquer suspeita
de tentativa de perturbar unilateralmente o equilíbrio constitucional
entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Em terceiro lugar, problemas
concomitantes poderiam receber atenção – por exemplo, se outras cortes
supremas, dentro de suas próprias jurisdições, devam ter poderes
similares de como considerar a regra do precedente; se o sistema pode e
deve ser concebido para informar as cortes sobre potenciais repercussões
de qualquer decisão particular; e se alguma corte (incluindo um
Appellate Committee na Corte de Suas Excelências) deve reunir-se quando
convidada a rever uma decisão prévia”.
Outro que se manifestou favoravelmente à idéia da aplicação
prospectiva foi o famoso Lord Diplock, na palestra “The Courts as
Legislators” (Holdsworth Club Lecture, 1965), referida pelo já citado
Michael Zander: “Lord Diplock, também, emprestou apoio à idéia. Numa
conferência feita vários anos atrás, ele se referiu ao fato de que o
impacto retrospectivo de decisões judiciais era uma das razões por que
os juízes relutavam em corrigir erros anteriores ou em adaptar uma regra
estabelecida às circunstâncias modificadas. Contudo, o efeito
retrospectivo das decisões judiciais era simplesmente um reflexo da
ficção legal, de modo que as cortes meramente declaram o direito como
ele sempre foi. É chegado o momento, ele pensava, ‘de refletir se nós
devemos descartar esta ficção’, e ele pensava que o desenvolvimento da
revogação prospectiva nas cortes de apelação nos Estados Unidos merecia
consideração.
E essas opiniões, apesar de isoladas, são sinalizações, para o
presente e para o futuro, no sentido de, na Inglaterra, embora
excepcionalmente, mas cada vez mais, aplicar-se, prospectivamente, o
precedente revogador.
Bom, dito isso, ponto final.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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