Eficácia temporal dos precedentes nos EUA (I)
Já escrevi aqui, penso que mais de uma vez, sobre a problemática da
eficácia temporal da decisão judicial que anuncia um novo “direito”,
“revogando” (ou ao menos modificando) anterior regra de orientação
diversa: deve ter essa “nova” decisão efeitos retroativos (podendo
afetar fatos e atos jurídicos acontecidos sob a égide da anterior
orientação legal/jurisprudencial) ou seus efeitos devem ser meramente
prospectivos? Essa é uma questão de grande relevância porque as pessoas e
a Administração, em sistemas baseados na vinculação aos precedentes
judiciais (no que está se transformando o sistema jurídico brasileiro),
pautam suas condutas de acordo com o que os tribunais afirmam, em suas
decisões, ser o direito.
Pois outro dia, no Facebook, recebi uma mensagem de uma ex-aluna
curiosa pedindo que eu explicasse como se dá a eficácia temporal dos
precedentes nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, os dois
principais países filiados à tradição do “common law”.
Eis, começando pelos EUA, a resposta que dei.
Como explica Jane C. Ginsburg (em “Legal Methods”, The Fundation
Press, 1996), nos EUA, a regra é a aplicação retroativa clássica do
precedente revogador, ou seja, “as decisões judiciais se aplicam a
eventos que ocorreram antes que a regra nova ou modificada fosse
declarada. Entretanto, quando decisões prévias são revogadas, as partes
desses casos não estão livres para reabrir o caso, se ele já tiver sido
objeto de um julgamento final”. E essa orientação é conhecida desde os
albores do século XIX, quando da decisão do caso United States v.
Schooner Peggy 5 US (I Cranch) 102 (1801).
Todavia, nos EUA, a atribuição de efeitos retroativos ao precedente revogador não é um dogma intransponível.
E, pelo que sei, o primeiro caso na Suprema Corte dos EUA em que,
claramente, se decidiu pela validade da aplicação prospectiva de um
precedente revogador foi Great Northern Ry v. Sunburts Co. 287 U.S. 358
(1932). A Suprema Corte dos Estados Unidos foi chamada a decidir sobre a
validade das decisões da Suprema Corte do estado de Montana nos casos
Sunburst Oil & Co. v. Grat Northern Ry 91 Mont. 216 7 P.2d. 927
(1932) e Montana Horse Products Co. v. Great Northern Ry 91 Mont. 194,
7.2d 919 (1932), em que o Tribunal estadual havia entendido como
meramente prospectivos os efeitos da revogação do precedente Doney v.
Northern Pacific Ry 60 Mont 209, 199 Pac. 432 (1921), baseado na
confiança que as partes implicadas tinham no precedente revogado, quando
realizaram os seus negócios, assim como na injustiça, in casu, de uma
revogação com efeitos retroativos. Na ocasião, o Justice Benjamin N.
Cardozo (1870-1938), falando pela unanimidade da Suprema Corte
americana, confirmou a validade da aplicação prospectiva em questão,
afirmando ser dado a um tribunal reconhecer tanto eficácia retroativa
como prospectiva ao precedente revogador. E, conforme citado por
Victoria Iturralde Sesma (em “El precedente em el common law”, Ed.
Civitas, 1995), o fez nos seguintes termos: “Acreditamos que a
Constituição Federal não tem influência sobre esta matéria. Um Estado,
ao definir os limites da adesão ao precedente, pode fazer por si mesmo
uma eleição entre o princípio de avançar com a aplicação ou fazê-la
retroagir. O Estado de Montana tem-nos mostrado, através da decisão de
seu mais alto tribunal, que, aberto a estes métodos alternativos, sua
preferência foi pela primeira alternativa. Ao fazer esta escolha, está
declarando o common law para aqueles que estão dentro de seus limites.
(...) Se esta é a doutrina do common law sobre a adesão ao precedente
como entendida e posta em prática pelos tribunais de Montana, não temos
liberdade, com fundamento em nada que esteja contido na Constituição dos
Estados Unidos, para impor sobre estes tribunais uma concepção
diferente, nem sobre a força obrigatória do precedente nem sobre o
significado do processo judicial”.
Outro caso emblemático de aplicação prospectiva de precedente, que
ilustra perfeitamente o que estou dizendo aqui, se dá com a decisão de
Mapp v. Ohio 367 US 643 (1961). Neste caso, a Suprema Corte dos Estados
Unidos, com base na 4ª Emenda à Constituição, decidiu que era
inadmissível a utilização de prova ilegalmente obtida no processo
criminal. Assim agindo, a Suprema Corte revogou o anterior precedente
Wolf v. Colorado 338 US (1949). Em virtude do precedente revogador,
visando ver reconhecidos, nele, efeitos retroativos, os tribunais
receberam uma enorme quantidade de pedidos de habeas corpus de pessoas
condenadas anteriormente com base em provas supostamente ilegais,
pleiteando a aplicação do novo precedente (Mapp v. Ohio) aos seus casos
e, consequentemente, a absolvição. A questão suscitou inúmeras decisões
contraditórias. Relata Victoria Sesma (em “El precedente em el common
law”) que “as argumentações dos tribunais intermediários de apelação
estiveram divididas: os Distritos 4º e 9º estabeleceram que o precedente
de Mapp fora totalmente retroativo (isto é, aplicável nos casos
decididos definitivamente), enquanto que os Distritos 2º, 5º, 7º e 10º
rechaçaram essa aplicação”.
A Suprema Corte americana, chamada a apreciar a questão em
Linkletter v. Walker 381 US 618, 620 (1965), acabou por afirmar que não
se podia dar efeitos totalmente retroativos à decisão de Mapp v. Ohio.
No caso, o Justice Tom C. Clark (1899-1977), também citado por Victoria
Sesma, afirmou: “Uma vez aceita a premissa de que não estamos obrigados
nem se nos proíbe aplicar uma decisão retroativamente, devemos sopesar
os méritos e deméritos em cada caso olhando a história anterior da regra
em questão, sua finalidade e efeito, e se a operação retroativa
fomentará ou retardará seu efeito. [Como] (...) os propósitos da regra
Mapp foram os seguintes: desestimular a ação ilegal da polícia; proteger
a privacidade do lar das vítimas e que os órgãos federais e estaduais
tenham os mesmos padrões jurídicos. Dar à regra Mapp um efeito
completamente retroativo – disse – não serviria a estes propósitos”.
No mais, pelo que sei, existem duas formas de os tribunais
americanos decidirem sobre a eficácia temporal de um precedente novo: a)
ao anunciar a nova regra, indicar, simultaneamente, a partir de quando
aplicá-la a outros casos, como ocorreu em Durham v. United States 214 F.
2d 862 (1954); e b) deixar a opção para a corte onde porventura essa
questão, no futuro, seja controvertida, o que, aliás, é o que
normalmente ocorre.
Por derradeiro, nos resta a questão: quais os critérios utilizados
nos EUA para se dar ao precedente revogador efeitos retroativos ou
meramente prospectivos? Sobre isso nós conversaremos na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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