Precedentes no NCPC: uma sistematização (II)
Como registrado aqui, o NCPC refere-se aos precedentes judiciais (em
sentido estrito ou em sentido amplo) em diversas passagens. Às vezes o
faz disciplinando especificamente a temática dos precedentes no “novo”
processo civil brasileiro; outras vezes, em dispositivos referentes a
institutos processuais que, de alguma forma, têm ligação com o tema.
Na semana passada, tratamos aqui, resumidamente, dos artigos 926 a 928 do NCPC.
Hoje conversaremos sobre art. 489 do NCPC, mais especificamente os
incisos V e VI do seu § 1º, disposições que, relacionadas
especificamente à fundamentação das decisões judiciais, se mostram
cruciais para a utilização de precedentes (como fundamento de decisões
judiciais) à luz do novo diploma legal.
Em síntese, entre outras coisas, o art. 489 passa a exigir das
decisões judiciais uma fundamentação mais precisa, afirmando, no seu §
1º: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que: V - se limitar a invocar
precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles
fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência
ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
Trocando em miúdos, o inciso V do § 1º do referido art. 489 do NCPC
afirma que não se considera fundamentada a decisão que simplesmente cita
um precedente sem demonstrar a pertinência dos seus fundamentos
determinantes (leia-se aqui, fazendo uso da expressão cunhada na
tradição do “common law”, sua “ratio decidendi”) ao caso concreto, isto
é, a pertinência entre a tese/princípio/regra do precedente e aquilo que
se acha discutido no caso em julgamento. Na verdade, é pressuposto,
para que o julgamento de um caso esteja obrigado (lembremos que o NCPC
“criou” uma série de precedentes vinculantes no seu art. 927) ou mesmo
persuadido pela decisão de um precedente, que seja demonstrada a
identidade, no grau de generalidade adequado (já que uma identidade
completa é algo difícil), entre fundamentos determinantes dos dois
casos.
No mais, se os fundamentos determinantes de um precedente não
coincidem com os fundamentos determinantes do caso posterior em
julgamento, os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do
caso posterior, como distintos. Consequentemente, o precedente não será
seguido.
E é aí que entra o inciso VI do § 1º do art. 489 do NCPC. Realçando a
importância dos institutos do(a) “distinguishing” e do(a) “overruling”,
ele afirma ser necessário, para a refutação de um precedente alegado no
caso concreto, demonstrar: (i) que os pressupostos de fato e de direito
do precedente e do caso em julgamento, no devido grau de generalidade,
não são os mesmos; (ii) e/ou que o precedente alegado já foi devidamente
superado por posterior decisão judicial de corte com competência para
tanto.
Como já disse certa vez, a doutrina do “stare decisis”, desenvolvida
com o passar dos anos pela tradição do “common law”, prevê técnicas ou
circunstâncias que, cuidadosamente analisadas, ensejam a não aplicação
do precedente, muito embora, à primeira vista, pareça ser ele de
seguimento obrigatório. Das técnicas utilizadas para a não aplicação de
um precedente, a da distinção entre os casos – ou seja, do(a)
“distinguishing” – é a principal ou, ao menos, a mais comum. Em linhas
gerais, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no
apropriado nível de generalidade, não coincidem com os fatos
fundamentais do caso posterior em julgamento, os casos devem ser
considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos.
Consequentemente, o precedente não será seguido. Embora tenha relevância
quanto aos precedentes obrigatórios, a distinção é importante não
apenas como o meio de se evitar um precedente obrigatório, mas também
como um meio de se evitar um que tenha caráter meramente persuasivo.
No que toca ao “overruling” (ou superação do precedente, como afirma
o NCPC), lembremos que a doutrina do “stare decisis”, aquela construída
na tradição do “common law”, não exige obediência cega às decisões dos
casos anteriores. Ela recomenda, com toda ênfase, que os juízes se
abeberem da sabedoria do passado, mas permite, em alguns casos, que eles
se afastem do que considerarem incorreto. Um dos mecanismos utilizados
para tanto é denominado, pela literatura jurídica anglo-americana,
precisamente, de “overruling”, que, segundo o “(The) Oxford Companion to
Law”, pode ser definido como a atitude de uma corte superior de
estabelecer que um precedente seu ou decisão anterior de uma corte
inferior, posta a seu conhecimento, era uma afirmação errada do direito e
não deve mais ser considerada como precedente.
Para finalizar, uma constatação: cá entre nós, aplicar esse art.
489, § 1º, V e VI, vai dar um trabalho dos diabos. Imaginem o caso em
que vários precedentes são alegados pelas partes, todos sem verdadeira
pertinência com a questão em julgamento, devendo o julgador ter que
demonstrar fundamentadamente a distinção para cada um deles. Muito bom
na teoria, mas, para quem conhece a prática dos nossos juízos, algo
praticamente impossível.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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