Fomentando a discussão
Tenho frequentemente escrito aqui sobre a teoria dos precedentes judiciais (também chamada, dando-se relevo à vinculatividade dos precedentes, de doutrina do “stare decisis”). Afinal, trabalho com esse tema desde o tempo da minha dissertação de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, lá se vão mais de uma dúzia de anos, bem antes de ele se tornar o “queridinho” dos nossos juristas de plantão.
Naturalmente, como se dá com qualquer articulista, recebo comentários sobre o que escrevo, alguns elogiosos, outros nem tanto, mas, em regra, são eles (os comentários) bastantes úteis. Entretanto, vez por outra, vem algum colega mais “desavisado” que diz não entender o porquê de eu insistir tanto em explicar os muitos institutos relacionados ao tema e a própria mecânica de aplicação dos precedentes se a coisa é simples assim: “se há um precedente vinculante é só aplicar ao caso concreto. Em poucas linhas. E ponto final”.
Hoje vou escrever para esses “desavisados”.
E, desde logo, afirmo: a decantada obediência aos precedentes, núcleo da doutrina do “stare decisis”, não deve levar a conclusões apressadas e incorretas, a que são tentados os juristas da tradição romano-germânica, quanto ao funcionamento do processo de aplicação deles aos casos concretos.
Como diz J. Oliveira Ascensão (no artigo “Fontes do direito no sistema do common law”, publicado na Revista de Direito Público), “não devemos pensar que a atuação do precedente torna a solução do caso uma atividade mecânica, em que ao juiz cabe a posição passiva de verificar se algum tribunal se pronunciou já sobre a matéria para, depois, decidir da mesma forma. Semelhante maneira de proceder poderá ser a do mau juiz anglo-americano, mas não é a que corresponde ao espírito do sistema”.
Não basta uma mera leitura do precedente e do caso a ser julgado. Até porque, conforme afirma William L. Reynolds (no livro “Judicial Process in a Nutshell”, West Publishing Co., 1991), levando em consideração a experiência americana (mas que não difere da dos demais países): “Durante os dois séculos de nossa existência como uma nação, os juízes escreveram opinions em muitos estilos diferentes. Hoje, o modelo, geralmente aceito, requer uma exposição da história do caso, um relato dos fatos, a apresentação das questões a serem decididas, a resolução dessas questões e uma explicação do motivo por que essas questões foram assim resolvidas. Uma vez seguido esse modelo, os estilos variam bastante. Alguns juízes são prolixos ao traçarem a história de toda doutrina desde os Year Books, enquanto outros são lacônicos. A qualidade da argumentação, também, varia bastante. Alguns juízes contentam-se em confiar na autoridade encontrada nos Restatements, em tratados literários e em precedentes e não reexaminam questões menos importantes. Outros investigam profundamente, argumentando cuidadosamente, investigando cada questão como se a vissem pela primeira vez. Todos, entretanto, acreditam ser necessário justificar a decisão de alguma maneira”.
E não é só isso. Para compreender o funcionamento da doutrina do “stare decisis” - e fazê-la funcionar se for o caso - impõe-se, antes mesmo da análise acurada de pormenores do precedente e do caso em julgamento, uma prévia e exata compreensão dos significados de diversos institutos jurídicos pertinentes à temática. É necessário compreender os significados de institutos como “ratio decidendi” e “obiter dicta”, e identificá-los no precedente apontado; é necessário, também, entre outras coisas, compreender e reconhecer, no cotejo entre o precedente e o caso em julgamento, a possibilidade de “distinguishing”, “overruling” e “reversing”, para poder, devidamente, aplicar ou deixar de aplicar o primeiro no julgamento do segundo.
Outrossim, por ser a doutrina dos precedentes judiciais em (grande) parte uma técnica, reconheço, na esteira do que afirma E. Allan Farnsworth (na sua famosa “Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos”, publicada entre nós pela Editora Forense ainda na década de 1960), que é tão difícil apreendê-la “por meio da leitura de uma discussão da doutrina, quanto o é aprender a andar de bicicleta através do estudo de um livro sobre mecânica, acrescendo que o assunto é muito mais controverso”.
Mas a leitura e discussão doutrinária ajuda, e muito, nesse aprendizado, que será consolidado com a prática crescente da manipulação de precedentes entre nós. E é isso o que eu tenho tentado fomentar aqui, na esteira de autores anglo-americanos, quanto à teoria dos precedentes, sugerindo um vocabulário padronizado, fornecendo os conceitos gerais e enfrentando algumas de suas questões mais palpitantes.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP |
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