O problema do nosso modelo misto
Esta semana, recebi um e-mail de um colega revoltado com a falta de
uniformidade na nossa Jurisdição Constitucional (na verdade, a revolta
dele se dirigia, especificamente, ao Tribunal perante o qual atuamos,
mas isso fica cá entre nós). Segundo ele, os julgados do Supremo
Tribunal Federal, tanto nas ações diretas de controle de
constitucionalidade como no controle difuso, devem ser respeitados, sem
os subterfúgios de interpretações casuísticas, sob pena de se verem
gravemente comprometidas as elevadas funções daquele Tribunal (o STF) e
do nosso sistema constitucional como um todo.
Já tinha pensado
sobre o tema (e escrito também) e, em resposta eletrônica, dei inteira
razão ao colega: essa coexistência dos controles concentrado e difuso no
Brasil está precisando de muitos ajustes.
Na verdade, como
sabemos, são dois os principais modelos ou sistemas de controle
jurisdicional da constitucionalidade das leis (tome-se aqui lei em
sentido lato para abranger outros atos normativos): o difuso, também
conhecido como o modelo americano; e o concentrado, modelo desenvolvido
na Europa continental. Eles são bastante distintos na forma de
intervenção e poderes, apesar de poderem até coexistir em determinado
ordenamento jurídico, como no caso, por exemplo, de Portugal e do
Brasil.
No Brasil, sob a Constituição de 1988 e as emendas ao
seu texto, no que toca ao controle difuso, basicamente, qualquer juiz ou
tribunal pode, em qualquer processo, por requerimento de qualquer das
partes, via de exceção na discussão do caso concreto, apreciar a
constitucionalidade de lei ou ato normativo. Como efeito imediato, dá-se
a não aplicação da norma tida por inconstitucional somente no caso
concreto discutido em juízo, com eficácia, portanto, “inter partes”. No
mais, compete ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do
Supremo Tribunal Federal (que poderá, por sua vez, após reiteradas
decisões, à luz do art. 103-A da CF, aprovar enunciado vinculante sobre a
questão). No que toca ao controle concentrado, ele se dá, no Brasil,
através de ações diretas perante o Supremo Tribunal Federal (ou perante
Tribunal de Justiça de Estado da Federação quando se tem por paradigma a
respectiva Constituição Estadual). As duas principais ações diretas são
a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal e
estadual (CF, art. 102, I, “a”, primeira parte) e a ação declaratória
de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (ação
declaratória de constitucionalidade - CF, art. 102, I, “a”, in fine),
que produzem decisões com eficácia para todos (“erga omnes”) e efeito
vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao
Poder Executivo. Adicione-se ao caldo a arguição de descumprimento de
preceito fundamental (CF, art. 102, § 1º), a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º) e a ação direta
de inconstitucionalidade interventiva.
O problema é que essa
mistura em nosso sistema jurídico dos dois modelos de controle de
constitucionalidade, concentrado e difuso, não foi esse sucesso todo,
frequentemente dando ensejo a decisões distintas para casos semelhantes e
ao não seguimento dos precedentes do Supremo Tribunal Federal.
Tenho uma tese para explicar o problema: em grande parte, ele pode ser
atribuído à adoção capenga do controle difuso no Brasil. Inspirados no
exemplo americano, nós adotamos esse modelo de controle, mas sem
adotarmos a doutrina do “stare decisis” (situação que, até onde eu sei, é
comum na América Latina). Isso é causa determinante da falta de
uniformidade decisória no controle de constitucionalidade entre nós.
Enquanto que, nos Estados Unidos, as decisões no controle difuso são
razoavelmente uniformizadas pela aplicação da doutrina do “stare
decisis”, no Brasil, exatamente pela ausência desta doutrina, essa
uniformidade não existe.
E o pior (sendo esse o caso reclamando
pelo meu colega): se a multiplicidade de processos no controle difuso
gera, comumente, decisões contraditórias - o que, dado a igualdade
perante a lei, já não é desejável - o problema ganha feição bem mais
grave quando essa contradição se dá em relação às decisões, em sede de
controle concentrado, do Supremo Tribunal Federal, órgão responsável
pela guarda da Constituição.
É crucial a criação de mecanismos
para harmonização dos dois modelos ou para, pelo menos, minorar a um
grau aceitável o problema da falta de uniformidade, sob pena de se ver
nosso sistema de controle de constitucionalidade como um todo, sobretudo
na visão do jurisdicionado, gravemente comprometido. Dentre os
mecanismos já previstos estão a eficácia “erga omnes” e o efeito
vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal no controle
concentrado, a repercussão geral nos recursos extraordinários e a súmula
vinculante.
Mas precisamos de mais. Muito mais. Quem sabe até
uma regra de vinculação mais abrangente nos moldes da doutrina do “stare
decisis” anglo-americana.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP |
02/02/2015
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