02/02/2015

Marcelo Alves
Marcelo Alves

O problema do nosso modelo misto


Esta semana, recebi um e-mail de um colega revoltado com a falta de uniformidade na nossa Jurisdição Constitucional (na verdade, a revolta dele se dirigia, especificamente, ao Tribunal perante o qual atuamos, mas isso fica cá entre nós). Segundo ele, os julgados do Supremo Tribunal Federal, tanto nas ações diretas de controle de constitucionalidade como no controle difuso, devem ser respeitados, sem os subterfúgios de interpretações casuísticas, sob pena de se verem gravemente comprometidas as elevadas funções daquele Tribunal (o STF) e do nosso sistema constitucional como um todo.



Já tinha pensado sobre o tema (e escrito também) e, em resposta eletrônica, dei inteira razão ao colega: essa coexistência dos controles concentrado e difuso no Brasil está precisando de muitos ajustes.



Na verdade, como sabemos, são dois os principais modelos ou sistemas de controle jurisdicional da constitucionalidade das leis (tome-se aqui lei em sentido lato para abranger outros atos normativos): o difuso, também conhecido como o modelo americano; e o concentrado, modelo desenvolvido na Europa continental. Eles são bastante distintos na forma de intervenção e poderes, apesar de poderem até coexistir em determinado ordenamento jurídico, como no caso, por exemplo, de Portugal e do Brasil.



No Brasil, sob a Constituição de 1988 e as emendas ao seu texto, no que toca ao controle difuso, basicamente, qualquer juiz ou tribunal pode, em qualquer processo, por requerimento de qualquer das partes, via de exceção na discussão do caso concreto, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo. Como efeito imediato, dá-se a não aplicação da norma tida por inconstitucional somente no caso concreto discutido em juízo, com eficácia, portanto, “inter partes”. No mais, compete ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (que poderá, por sua vez, após reiteradas decisões, à luz do art. 103-A da CF, aprovar enunciado vinculante sobre a questão). No que toca ao controle concentrado, ele se dá, no Brasil, através de ações diretas perante o Supremo Tribunal Federal (ou perante Tribunal de Justiça de Estado da Federação quando se tem por paradigma a respectiva Constituição Estadual). As duas principais ações diretas são a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal e estadual (CF, art. 102, I, “a”, primeira parte) e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (ação declaratória de constitucionalidade - CF, art. 102, I, “a”, in fine), que produzem decisões com eficácia para todos (“erga omnes”) e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. Adicione-se ao caldo a arguição de descumprimento de preceito fundamental (CF, art. 102, § 1º), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º) e a ação direta de inconstitucionalidade interventiva.



O problema é que essa mistura em nosso sistema jurídico dos dois modelos de controle de constitucionalidade, concentrado e difuso, não foi esse sucesso todo, frequentemente dando ensejo a decisões distintas para casos semelhantes e ao não seguimento dos precedentes do Supremo Tribunal Federal.



Tenho uma tese para explicar o problema: em grande parte, ele pode ser atribuído à adoção capenga do controle difuso no Brasil. Inspirados no exemplo americano, nós adotamos esse modelo de controle, mas sem adotarmos a doutrina do “stare decisis” (situação que, até onde eu sei, é comum na América Latina). Isso é causa determinante da falta de uniformidade decisória no controle de constitucionalidade entre nós. Enquanto que, nos Estados Unidos, as decisões no controle difuso são razoavelmente uniformizadas pela aplicação da doutrina do “stare decisis”, no Brasil, exatamente pela ausência desta doutrina, essa uniformidade não existe.



E o pior (sendo esse o caso reclamando pelo meu colega): se a multiplicidade de processos no controle difuso gera, comumente, decisões contraditórias - o que, dado a igualdade perante a lei, já não é desejável - o problema ganha feição bem mais grave quando essa contradição se dá em relação às decisões, em sede de controle concentrado, do Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pela guarda da Constituição.



É crucial a criação de mecanismos para harmonização dos dois modelos ou para, pelo menos, minorar a um grau aceitável o problema da falta de uniformidade, sob pena de se ver nosso sistema de controle de constitucionalidade como um todo, sobretudo na visão do jurisdicionado, gravemente comprometido. Dentre os mecanismos já previstos estão a eficácia “erga omnes” e o efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal no controle concentrado, a repercussão geral nos recursos extraordinários e a súmula vinculante.



Mas precisamos de mais. Muito mais. Quem sabe até uma regra de vinculação mais abrangente nos moldes da doutrina do “stare decisis” anglo-americana.


Alguma ideia, caro leitor?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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