O POETA GRAXEIRO
Gileno Guanabara, advogado e sócio do IHGRN
Na visita que d. Pedro II fez à
província da Bahia, no ano de 1859, dentre as autoridades locais que o
recepcionaram, o soberano foi surpreendido e reverenciado pela presença de um
poeta popular, o desabrido João Nepomuceno da Silva.
A sua verve
estava mais para a picardia audaciosa e irreverente de um Gregório de Mattos,
de Laurindo Rabello, dos Pessoa da Silva, cujo sortilégio era o de não
desperdiçar a oportunidade de atanazar a vida dos poderosos e seus privilégios.
Tamanho era o rigor de suas críticas mordazes que o povo o apelidou de poeta graxeiro.
Não perdoava a falta de sorte de sua amargurada vida, compensando suas
frustações em atanazar o comportamento e escândalos impróprios para a época.
Nesse aspecto, pesavam mais o seu caráter impulsivo e as firulas de um
talentoso vate contrariado.
Divulgada
com certa antecipação a visita imperial à sede da Província da Bahia, as
autoridades se preocuparam de estabelecer uma agenda de homenagens e recepções
que comportassem a presença tão ilustre. Um boato se espalhou. Dava conta que
João Nepomuceno gostaria de falar diretamente com o imperador. Certamente, a
sua fala não corresponderia ao protocolo exigido para os cumprimentos de praxe.
Pelo contrário, a sua fala seria a da irreverência e reclamos do povo. Dessa
forma, o poeta graxeiro se
manifestaria, como um direito seu, de sua livre pensamento e liberdade. Ninguém
o impediria de se expressar perante o visitante ilustre. Portanto, as ameaças
de prisão que passou a sofrer, as promessas para convencê-lo em contrário, nada
o fez desistir do seu intento.
No dia 7 de
outubro, d. Pedro II chegou à sede da Província. Dois dias antes, Nepomuceno
desaparecera. Ninguém sabia a respeito do seu paradeiro, somente boatos e
conjecturas. Formara-se nas ruas o cortejo de recepção, as ruas embandeiradas,
as moças das janelas atiravam pétalas de flores ao visitante. Ao final, no coreto
do largo do Theatro (atual Praça Castro Alves), a tropa apresentou armas,
enquanto a d. Pedro foram entregues as chaves da cidade das mãos do alcaide presidente,
conselheiro Herculano Ferreira Penna. O povo delirou. Os olhos do imperador
marejavam de tanta felicidade, tal a manifestação popular que o acolhia.
Por fim, o
cortejo solene se dirigiu ao salão nobre do palácio, dando-se as apresentações
dos deputados, dos juízes, dos vereadores, dos chefes políticos, com os devidos
afagos e abraços. De repente, um murmurinho ecoou entre os presentes. Sem que
se soubesse de como, nem de onde, adentrou na sala o poeta graxeiro, para surpresa do anfitrião e das autoridades
gratas.
Com frieza
tumular, indiferente a preocupação dos olhares que se entrecortaram, o poeta
dirigiu-se ao imperador, a quem reverenciou em genuflexão respeitosa. Sem
soçobro, retirou do bolso da fatiota o alfarrábio em tiras, aumentando ainda
mais a dúvida sobre o que teria o poeta escrito, para ler naquela ocasião. D.
Pedro, num gesto cavalheiresco, aquiesceu e sinalizou permitindo a sequência do
ato. João Nepomuceno iniciou a peroração de sua verve: “ – Majestade dá licença... // Fardas saiam dos cantos bolorentas,/ De
balões uma vez fiquem varridas/ As lojas do commercio brasileiro/ Escovem-se as
caponas e se remendem./ Velhos façam a barba; as moças comam/ De sepo, e fitas
se lhe façam ornadas/ Colletes de três terças e dois palmos./ Gravatas grandes
de atrevidas pontas/ Calças estreitas de fevella e cós.” // “Que cem anos já têm, se escovem hoje;/
Chapéos sem abas de afliladas copas,/ Camisas grandes, que a canela roçam,/
Tudo veja contente a luz do dia,/ E o grande arsenal se apinhe de povo;/ Não
entrem negros que não têm monarca/ Os pobres também não, que não têm rei.”.
A introdução
poética já antecipou a exposição das mágoas do poeta que prosseguiu em
referência ao professorado incompetente, apesar da preocupação que causava, à
exceção da tranquilidade do imperador: “Primeiro
que os professores/ Dão lição lá nas escolas,/ De manhã de chambre velho./ De
tarde de camisolas.”. E numa referência ao tratamento dispensado aos
internos da Santa Casa, satirizou em versos: “O café, que não ilude,/ Parece agua barrenta;/ É o café que o mal
aumenta,/ Bem adverso à saúde./ O mingáu parece grude/ Feito dagua e farinha,/
Ralo caldo de galinha/ Bem picado de vinagre;/ Parece tripa de bagre/ Misturado
com sardinha.”
Àquela
altura dos acontecidos, a insolência do poeta
graxeiro, que parecia não ter mais fim, investiu contra a magistratura: “A nossa Relação de bons e maos/
Desembargadores se compõe; é certo/ Que ali há mais brejeiros que homens
sérios.” E em referência às graças que a visita a todo lixo na Província
encobriu, vaticinou: “Senhor meu, toda a
Bahia/ Nada aqui em porcaria./ Eu vos afirmo, eu vos juro/ Se não fosse a vossa
vinda/ Oh! Existiria ainda/ Em cada canto um monturo.”
Não fora a
condescendência do soberano que ouvia infenso ao desaforo do poeta,
contrariamente ao desespero manifesto pelo presidente da Província e o chicote
fez estalar entre as paredes do Palácio: “Ninguem
mette aqui prego sem estopa,/ Ninguem faz um favor sem pedir três.” E
concluiu a apologia de seu desabafo, sem alterar o monocórdio:
“Eu, João, poeta novo,/ Graxeiro
denominado,/ Que não tarda proclamado/ Ser defensor de seu povo, Faço sciente
que o rei/ Que visitou nossa grei,/ Recebeu meu relatório/ Este folheto notório/
Que sobre o povo atirei.”
No silencio
que a seguir durou, o poeta graxeiro,
em despedida, fez a última saudação ao monarca e, em passos cadenciados, se
retirou do recinto, sem ser aparteado. A sua sátira estava registrada solenemente,
apesar das advertências e tentativas de conter a sua indignação. A partir de
então poderiam surrá-lo, prendê-lo, mas a sua vindita estava cumprida. A sua
história estava contada.
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