13/12/2019



O PAX CLUBE E SEUS HABITANTES

Valério Mesquita*

O Pax Club de Macaíba reinou durante várias gerações, desde o início dos anos cinquenta, construído pelo prefeito Luís Cúrcio Marinho. A sua história merece um livro separadamente, evocando fatos, personagens, eventos, tudo, enfim, que serviu densamente para projetar a história social de Macaíba. A começar pelos nomes zoológicos e folclóricos dos garçons: Luís Bicho Feio, Tota Passarinho, João Cabeção, Antônio Paulino, Geraldo de Doca, os cobradores Vagareza, Chico Duzentos e Paulo Bofão, entre outros, reverenciados com humor e saudade de um tempo que não volta mais. Um fenômeno (econômico, talvez), que precisa ser melhor estudado acabou com a vida social dos municípios de médio porte como Ceará-Mirim, Macaíba, Caicó, Currais Novos, Açu, exceptuando-se apenas as festas esporádicas das padroeiras, vaquejadas, que não significam realmente atividade social clubística, efetivamente organizada. Até Natal mesmo sucumbiu e o chamado “Café Society” que foi imortalizado pelos cronistas sociais do passado e os sodalícios não existe mais. O tempo e os costumes mudaram tudo. Ficaram para trás, para a história, Gil Braz, Fred Ayres, Jota Pifa e Paulo Macedo, único sobrevivente, porque se reciclou e inovou a sua coluna. O imenso Titanic, com todas as “very important persons”, naufragou com os capitães Ibrahim Sued, Jachinto de Thormes, etc.
Que universo multifacetário reside em um clube social que abriga frequentadores de todos os matizes, boêmios e loucos, anjos e anarquistas, matrizes e meretrizes, mocinhos e bandidos, palhaços e mascarados?
O velho Pax teve o seu apogeu e decadência. Mas sobreviveu graças aos seus devotados diretores e sócios, que se expuseram por um ideal ilusório de associação, sob a égide do paletó e gravata, do bolero e do samba, da semipenumbra que escandalizava a paróquia e alimentava a homilia dominical da santa missa. E os flashes desse tempo me chegam nitidamente. Da jovem Carmita, míope, que, desfilando em passarela na Festa das Flores, caminhou demais e foi cair sobre a mesa da comissão julgadora; do carnaval de 60, onde a lança-perfume ardente e vibrante de Plácido Saraiva atingia com jatos queimantes os bumbuns, suados e frondosos, das damas da sociedade, quase registrando vitimas a lamentar; do senhor Emídio Pereira, proferindo pontualíssimas palestras todos os anos sobre a poetisa Auta de Souza e o aeronauta Augusto Severo, através do serviço de amplificadora diretamente do “sodalício tradicional e elegante” da cidade; das confusões, das brigas, do porre homérico de lança-perfume de Chiquinho Ribeiro, que o fez desabar no rio Jundiaí; das festas juninas, quadrilhas estilizadas; do programa “Data querida” que registrava aniversários e namoricos através do “serviço de divulgação da Associação Pax Club, a voz de Macaíba”, e que tantos equívocos e problemas acarretou, como o do motorista Zé Cearense, que quase apanhava da valente mulher por causa de uma falsa “oferenda musical com muito amor e carinho”.
São mais de setenta anos de história do Pax Club do Parque Governador José Varela. Há muita coisa a contar sobre ele e os seus complexos habitantes. Relembrando agora, vai atiçar a memória de muitos que direta ou indiretamente passaram pela sua portaria.

(*) Escritor.

11/12/2019



O SINO DA MATRIZ

Valério Mesquita*

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Macaíba possuía um sino antigo, fincado na fachada superior do templo, que durante muitos anos se constituiu no cartão postal da cidade. O seu som dolente e pungente reunia os católicos de perto e da distância. As badaladas da Ave Maria, às 18 horas, envolvia de contrição e respeito toda urbe cristã, tal a magnitude do toque, a severidade do timbre do bronze que conferia à sagrada construção de 1882, uma visão mística a quem se postasse de frente.
Na santa missa, durante a elevação do cálice, a sonorização propagava ondas potentes e magnéticas que faziam os ausentes se benzerem. Ainda repercute nas ruas e nos caminhos o dobre de finados, executado com tanta perfeição que mais parecia uma música eletrônica saída do órgão celestial de um campanário rogando acolhida, como uma prece, pela alma do falecido. O toque do sino imprimia fé e dignidade cristã ao cortejo fúnebre pelas ruas de Macaíba.
Nas catedrais e igrejas do mundo inteiro, os sinos sempre exerceram um papel evangelizador invisível, porque mítico, e mágico, pois só o catolicismo o utiliza como símbolo e marca registrada de sua fé.
De um tempo para cá (cerca de mais de trinta anos), a sonoridade forte do velho sino emudeceu. Por que parou, parou por quê? Perguntam-se os paroquianos.
Sobre o fato, rolam muitas histórias. Uma delas cômica, Num candente toque de finados a corda enroscou-se na perna do sacristão, o saudoso Adelino Moreira, quase o arremessando janela a baixo, tal a força e o peso do instrumento. O padre Alcides Pereira teria decretado a aposentadoria do sino e fechou a janela de cobogó para ele não dobrar mais. O fato é que não se ouviu mais o austero sino da Matriz. Ouvi, ultimamente, o som do atual. Achei-o diminuto e agudo. Não se coaduna com a dimensão do templo de mais de 140 anos de idade. O som é roufenho, fraco como se o bronze tivesse contraído sinusite. Com essa dúvida, procurei a secretária paroquial Jalva Pereira dos Santos que me informou que o sino é o mesmo. Ele foi restaurado na Base Naval de Natal porque apresentava uma rachadura. O lamento que faço é porque morreu o som personalíssimo e forte de antigamente. Envelhecido por tantas canções de louvor e contrição, além de cirurgiado, o sino da Matriz perdeu a voz. As suas “cordas vocais” se debilitaram e já não emite o mesmo sinal, a mesma benção, a mesma mensagem cifrada do seu som característico. Apenas, hoje, escuto o eco intermitente como se fosse o suave barulho das renováveis ondas do mar. Mesmo assim, salve Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Macaíba! Salve o dia 08 de dezembro!

(*) Escritor.





Mais respeito com a historia
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em sociologia e historia – Do IHGRN

Sempre me senti incomodado com o sensacionalismo provocado por certas “descobertas” ou novas interpretações históricas, que são apresentadas como façanhas fantásticas, mas que, na verdade, são danças de picadeiro. Na minha opinião, ciência é coisa séria e assim deve ser tratada. Não custa destacar que, somente no século XX foi que a história, como relato e interpretação de fatos, deixou de ser “expressão literária” para ser uma “ciência”. Nesse percurso, o “campo de palpiteiros” perdeu lugar para outros elementos: a importância e confiabilidade das fontes que dão sustentação e exatidão da narrativa.
No entanto, a historiografia brasileira, de vez em quando, é sacudida por uma espécie de tremores de parque de diversão. O exemplo mais recente e esdrúxulo foi o pronunciamento do ministro da educação, Abraham Weintraub, em plena comemoração da Proclamação da República, chamando o movimento que depôs monarquia de golpe infame e traiçoeiro, perpetrado por militares; isso tudo se sabendo que o governo ao qual o senhor Ministro serve tem uma forte estrutura militar.
Na segunda metade do século passado, quando contestar era um modo novo de ver a vida, mandaram que todos esquecessem os longos cabelos e barbas de Tiradentes, pois ele os usaria curtos. “Joaquim José da Silva Xavier era militar e, como se sabe, cabelos compridos nunca foram tolerados nas Forças Armadas” – afirmou um desses arautos da nova história, esquecendo-se que o Tiradentes cultuado como herói é o revoltoso preso, enforcado e esquartejado; e esse tem barba e cabelos compridos. Por outro lado, cumprimento capilar não é história; no máximo é uma questão de estética.
Esses dois casos são excentricidades que até podem ser chamados de insignificâncias. Porém há outros. Em 1979 foi lançado um livro que “causou”, como se dizia então, entre os estudiosos de cabelos longos e barbichas (olhe aí, novamente a força capilar), bolsa à tiracolo e sandálias franciscanas. Trata-se de “Genocídio americano: a Guerra do Paraguai”, de Júlio José Chiavenatto. O livreto se sustenta na afirmação de que a guerra foi um conluio do Brasil com a Inglaterra, pois esta não via com bons olhos um suposto desenvolvimento industrial do Paraguai. O autor só se esqueceu de um detalhe: naquele momento Brasil e Inglaterra estavam com relações diplomáticas rompidas.
No bojo da Guerra do Paraguai, veio-me a lembrança outra desconstrução historiográfica. Trata-se da origem do nome do Município de Baraúna, de nosso Estado, cujo topônimo é bastante comum no Nordeste. Há cidades com esse nome no Rio Grande do Norte e na Paraíba, um bairro em Feira de Santana e um povoado em Barreiras, ambos na Bahia. A maioria deles deriva de uma arvore, a baraúna, ibaraúna ou braúna.
Alguns estudiosos criaram uma confusão desnecessária, ao porem em dúvida a origem do nome do Município potiguar. Afirmam que há três hipóteses: a) homenagem ao herói Alexandre Baraúna; b) uma planta por nome de ibiraúna, ou c) a existência de um Preto Velho conhecido pela alcunha de Baraúna. Não há hipóteses, há simplesmente especulação “em busca de ribalta”, como diria Nelson Rodrigues.
Vejamos os fatos. Em um artigo publicado na Revista do IHGRN (vols. XLI a XLIV, de 1944 a 1947), Vingt-un Rosado fez a biografia de Alexandre Baraúna, dizendo que o “Cel. Vicente da Motta [por acaso meu bisavô] conheceu pessoalmente Alexandre Baraúna” e ele “era filho de Luiz Francisco Paredão, ex-escravo do português Alexandre Soares do Couto” [...]. Esse cidadão “seguiu para o Ceará, em cuja capital no ano de 1851 ingressou nas fileiras do Exército Imperial. Em 1865, encontrava-se o bravo filho de Mossoró a escrever, na tomada de Paysandu, com o seu sangue, uma das páginas mais belas da história militar do Brasil”.
Nove anos depois, quando Vingt Rosado era prefeito de Mossoró, foi criado o Distrito de Baraúna. Na época, Vingt-un fazia parte do governo do seu irmão e foi o redator do decreto. Pergunta com resposta óbvia: qual teria sido a inspiração do nome do novo distrito (hoje Município de Baraúna), o herói, a planta ou o preto velho?

Tribuna do Norte. Natal, 24 nov. 2019.



09/12/2019


As contradições (II)
Na semana passada, tratei aqui das contradições ou antinomias normativas. Além de tentar explicar o que seriam elas, comecei a classificá-las de acordo com o que é ensinado pela doutrina especializada. E deu tempo de vermos a divisão das antinomias em reais ou aparentes.
Sigamos hoje na mesma toada, primeiramente levando em consideração o âmbito em que se dá a contradição aventada, com a classificação das antinomias em: de direito interno, de direito internacional ou de direito interno-internacional. De modo bem simplificado, a antinomia de direito interno é a aquela que se dá entre normas de um mesmo ordenamento jurídico. A antinomia de direito internacional é aquela que se dá entre normas de direito internacional, tais como os tratados e as convenções internacionais, os costumes internacionais, os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas, as decisões judiciais das cortes internacionais e por aí vai. Já a antinomia de direito interno-internacional é aquela que se dá entre norma de direito interno de um país e norma de direito interno de outro país ou entre norma de direito interno de um país e norma de direito internacional.
As antinomias podem ser também classificadas, levando em consideração a extensão da contradição, em: total-total, total-parcial e parcial-parcial. A antinomia é total-total quando as normas em cotejo não puderem ser de forma alguma aplicadas sem conflitar totalmente uma com a outra. A antinomia é total-parcial se uma das normas não puder de modo algum ser aplicada sem entrar em conflito com a outra norma; mas esta, por sua vez, por ter uma extensão ou âmbito de validade mais amplo, pode ser em parte aplicada sem conflitar com a primeira. Já a antinomia parcial-parcial ocorre quando as duas normas estão em antinomia entre si apenas parcialmente, restando, em ambas, partes que não estão em conflito. Em outras palavras, as duas normas possuem um campo de aplicação em conflito, em relação uma à outra, e campos de aplicação em que não há conflito algum.
Por derradeiro, quanto ao conteúdo das normas, temos a classificação das antinomias em próprias e impróprias. E, aqui, terei o prazer de voltar ao meu tempo de estudante de bacharelado para citar trechos do “Compêndio de introdução à ciência do direito” (Editora Saraiva, 1989) da professora Maria Helena Diniz. Nas palavras da autora, a antinomia própria se dá “quando uma conduta aparece ao mesmo tempo prescrita e não prescrita, proibida e não proibida, prescrita e proibida”. Como exemplo, ela aponta a antinomia entre norma do Código Militar, que prescreve a obediência incondicionada às ordens de um superior, e prescrições do Código Penal, que proíbem certas condutas (matar, privar alguém de liberdade etc.). E detalha: “quando um capitão ordena o fuzilamento de um prisioneiro de guerra, o soldado vê-se às voltas com duas normas conflitantes – a que o obriga a cumprir ordens do seu superior e a que o proíbe de matar um ser humano. Somente uma delas pode ser tida como aplicável, e essa será determinada por critérios normativos”. Já a antinomia imprópria, que demanda uma análise mais pormenorizada do conteúdo da norma, Maria Helena Diniz a subdivide em algumas espécies. A antinomia de princípios, relacionada às ideias basilares do ordenamento jurídico, acontece quando duas normas protegem princípios/valores opostos, como a liberdade e a segurança. Antinomia valorativa, quando o legislador não for fiel a uma valoração por ele próprio realizada, como, por exemplo, ao prescrever uma pena mais leve para delito mais grave e uma pena mais grave para um delito mais leve. Se um Código Penal punir menos severamente o infanticídio do que a exposição de criança a perigo de vida pelo enjeitamento, “surge esse tipo de antinomia, que deve ser, em geral, aceita pelo aplicador [do direito]”. A antinomia teleológica, quando temos uma “incompatibilidade entre os fins propostos por certa norma e os meios previstos por outra para a consecução daqueles fins”. Por fim, a autora também fala da antinomia técnica, “atinente à falta de uniformidade da terminologia legal”, dando, como exemplo, “o conceito de posse em direito civil”, que “é diverso daquele que lhe é dado em direito administrativo”. Ainda segundo a querida professora, essas antinomias são chamadas de “impróprias porque não impedem que o sujeito aja conforme as normas, mesmo que com elas não concorde”. Já as antinomias próprias “caracterizam-se pelo fato de o sujeito não poder atuar segundo uma norma sem violar a outra, devendo optar, e esta sua opção implica a desobediência a uma das normas em conflito, levando-o a recorrer a critérios [de solução das antinomias] para sair dessa situação”.
Depois dessa longa citação, só me resta também “plagiar” o jovem Casimiro de Abreu (1839-1860): Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da minha vida/Da minha universidade querida/Que os anos não trazem mais!
E, feito isso, ainda saudoso, prometo tratar, nas semanas vindouras, dos famosos critérios para a solução das antinomias jurídicas.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

01/12/2019


DE REPENTE, O VERÃO

Valério Mesquita*

Lendo Chico Xavier, que orava a Deus para não perder o romantismo, mesmo sabendo que as rosas não falam, refleti sobre o verão que está chegando e trazendo com ele os cajus, as acácias e os pau-d’arcos amarelos. Lembrei-me também de rever as crônicas sobre o tema escritas com brilho superior por Newton Navarro, Berilo Wanderley, Sanderson Negreiros, Diógenes da Cunha Lima, Luís Carlos Guimarães e Vicente Serejo. Todos, poetas e românticos que ao longo de suas vidas entenderam que a grandeza não consiste em receber elogios, mas em merecê-los por escreverem tão maravilhosamente.
A minha crônica não tem a beleza inaugural de uma manhã de ressurreição, da oração de uma criança, de uma prece de D. Heitor, de uma tarde contemplativa de uma janelinha aberta sobre a imensidão dos campos ou de uma doce e suave madrugada, deusa de todos os poetas. Ela tem o toque metálico do clarim do sentinela; o aviso do anunciante das manhãs e das noites e seus mistérios; do bom dia, boa noite, do guarda noturno e diurno das praças e jardins de Natal; do sinal digitado do faroleiro pastorador de estrelas e de mares; tudo para saudar o advento das acácias, dos cajus, dos pau-d’arcos e de que Natal se cobrirá de amarelo.
A política passou e os seus gladiadores. Vamos remover os horríveis outdoors, fotos e fatos que mancharam a cidade. Recolham-se as bandeiras da guerra aos seus quartéis ou que sirvam de lençóis aos descamisados. É preciso despoluir visualmente Natal para a chegada triunfal dos cajus, das acácias e das flores dos pau-d’arcos.
Que os homens se desarmem de suas propostas solertes e ganhem as praias, levem os cajus e se bastem com o calor da estação e contemplem o mar aceso em lua do poeta Gilberto Avelino, para que possa entender os pontos cardeais da vida. O verão está chegando e janeiro é tempo de sepultar as beligerâncias, as agitações da alma e do coração, como se o ano novo lhes fosse trazer as ilusões de um amor adolescente, o retorno das jovens tardes de domingo ou a nostalgia dos instantes antigos e perdidos de sua profundidade vital. E que venha de repente o verão, mesmo que traga no ventre o filho incestuoso da gripe suína. Deus nos compensará com a mágica contemplação das acácias, dos pau-d’arcos amarelos, róseos, como se multiplicasse o seu talento criador em mil Van Gogh, Rembrandt, Renoir e Picasso.
(*) Escritor.


As contradições (I)
As contradições normativas – ou, mais precisamente, as antinomias – são muito comuns no direito. De fato, o ordenamento jurídico de qualquer país é composto por um grande conjunto de normas (incluindo regras e princípios), oriundas das mais variadas fontes, que podem apresentar, num âmbito de validade aparentemente idêntico, oposições de conteúdo entre si que as tornam incompatíveis. Sob o ponto de vista da lógica das normas, a chamada “lógica deôntica”, teríamos, em um mesmo ordenamento jurídico e supostamente sob um mesmo plano de validade, grosso modo, situações do tipo: (i) uma norma obriga e outra proíbe; (ii) uma norma obriga e outra permite; (iii) ou uma proíbe e outra permite um determinado tipo de comportamento.
Esse tipo de situação, entretanto, não é desejável. Mais do que isso, não deve ser admitida. Um ordenamento jurídico, por caracterizar-se como um sistema, não pode conter normas incompatíveis. Um sistema, por definição, há de ser coerente. Nele, existindo normas incompatíveis, uma delas (ou mesmo ambas, em uma situação limítrofe) deve ser “eliminada” ou ao menos posta de lado na resolução do caso concreto.
Aqui é importante que se frise a “transitoriedade” da inaplicabilidade, da norma assim tida, em hipótese de antinomia normativa. Entre nós, tirando o caso da declaração de inconstitucionalidade no controle abstrato pelo Supremo Tribunal, com sua eficácia “erga omnes” (leia-se: força de lei), a norma desconsiderada em caso de conflito não será extirpada do ordenamento jurídico, mas, tão somente, inaplicada no caso concreto.
Como ensina Victoria Iturralde Sesma, em “Aplicación del derecho y justificación de la decisión judicial” (Editora Tirant lo Blanch, 2003), uma das tarefas fundamentais do intérprete ou aplicador do direito é verificar se há ou não antinomia entre as proposições aparentemente aplicáveis a um caso concreto e, havendo, resolver satisfatoriamente essa contradição. E o juiz – e aqui tomo esse operador do direito como exemplo, uma vez que ele é o derradeiro resolutor dos conflitos de interesses – deve fazer valer uma das normas ou proposições justificadamente, usando dos conhecidos critérios para a solução das antinomias jurídicas (hierárquico, de competência, cronológico e de especialidade).
Entretanto, antes de adentrarmos propriamente no trabalho do intérprete/aplicador do direito para a resolução das antinomias normativas, é de bom alvitre classificarmos estas (as antinomias) a partir de pontos de vista identificados pela doutrina especializada.
De início, as antinomias normativas podem ser classificadas, quanto ao grau de incompatibilidade existente, em reais ou aparentes.
Diz-se que uma antinomia normativa é real se, após a correta interpretação das normas em conflito e o adequado uso dos critérios para a solução das antinomias, a incompatibilidade entre elas não for de forma alguma resolvida. Teríamos, num mesmo ordenamento jurídico, duas normas, oriundas de autoridades igualmente competentes, com o mesmo plano de validade, que deixariam o intérprete/aplicador do direito numa situação invencível para a escolha de uma delas. Sem critério de solução razoável no ordenamento jurídico até então posto, a solução passaria pela edição de uma terceira e nova norma, que eliminasse o conflito.
Diz-se, ainda, que a antinomia real é raríssima, uma vez que o direito possui tanto a via aberta da interpretação das normas em conflito como um suficiente conjunto de critérios para a solução de quase todas as possíveis antinomias. Eu vou mais longe, entretanto. Arrisco dizer que no direito não existem antinomias reais. O intérprete/aplicador do direito, trabalhando com os atributos de unidade e coerência do sistema (leia-se: do ordenamento jurídico), com a ferramenta multiúso da interpretação e com os critérios para a solução da antinomias, sempre pode e deve encontrar uma solução interpretativa que necessariamente resolva o conflito. Em outras palavras, em direito, a solução sempre existe e todo conflito é apenas aparente. Aliás, no que toca aos princípios – e aqui faço uso da classificação das normas em regras e princípios, segundo a lição de Robert Alexy (1945-) –, muitos sequer admitem a existência de antinomias entre eles, uma vez que a ideia, na ponderação de princípios, é exatamente fazer com que a aplicação de um não signifique o completo aniquilamento do outro. Na verdade, eu considero o direito um sistema que labora por meio de uma “lógica paraconsistente”, que desafia o princípio da não contradição, mais ou menos nos moldes daquilo que foi imaginado pelo nosso Newton da Costa (1929-). Mas isso é assunto para uma tese de doutorado.
Por hoje, já tendo falado demais, rogo deixarmos as demais classificações das antinomias normativas para a próxima semana. Um tico de paciência, por favor.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

22/11/2019



MEMÓRIA POPULAR II

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

01)  Em Assu, lá pelos anos setenta, Walter Leitão era o Prefeito Municipal. Na irreverência e na ironia era inexcedível. De uma feita, chegava a sua casa na cidade, quando encontrou um eleitor dormindo na poltrona da sala de visita. Não o despertou. Tomou banho, almoçou e ficou só de cuecas samba-canção. Quando o correligionário acordou e viu o Prefeito caminhando pela casa só de ceroula, exclamou: “Mas, seu Walter o senhor ta só de cueca?”. “Claro, é para você entender que a merda dessa casa é minha e não se permitir a fazer certas intimidades”.
02) O prefeito Walter Leitão atendia o povo na rua, em casa, na Prefeitura e em qualquer parte. Uma mulher a ele se dirigiu com certa arrogância para lhe reclamar um desconforto: “Prefeito, estou aqui com o pé da barriga doído porque comi macaxeira. O senhor não vai dar um jeito não?”. Walter Leitão, que não suportava malcriação, de bate pronto, respondeu com grossa irreverência: “E eu estou com a macaxeira doida de tanto comer pé de barriga”.
03) Tempo melhor da política foi o dos anos cinqüenta na fase áurea do PSD versus UDN. Aqui no Rio Grande do Norte a política era um pastoril animado e lírico. Na Assembléia Legislativa se engalfinhavam dois deputados da região agreste: o Coronel Zé Lúcio e o Deputado João Frederico, que tinha como logomarca de sua atuação parlamentar, a expressão: “É um só mas vale por dez”. Aí a turma imaginava tudo que queria para macular a frase ambivalente do combativo deputado. Mas, estava escrito que o Coronel Zé Lúcio não perdoava a invasão dos seus redutos pelo Dr. João Frederico que discursava bem, além de valente e obstinado. Numa sonolenta sessão vespertina da Assembléia, o Deputado José Lúcio resolve discursar (coisa rara), despertando a curiosidade geral, inclusive do presidente da Casa, Dr. José Augusto Varela. “Senhor Presidente”, iniciou o representante de Santo Antônio do Salto da Onça, já aos gritos. “Subi aqui para dizer que o Deputado João Frederico tá comendo a empregada dele!”. A campainha da mesa soou estridente, acionada pelo Dr. José Varela. “Deputado, V.Exa. está ferindo o decoro e o regimento da Assembléia”, censurou energicamente. “Mas, acontece, Zé Varela, que eu provo!”. Aí foi um Deus nos acuda! Colegas parlamentares desceram Zé Lúcio da tribuna e o levaram ao gabinete do Presidente para curar a sua febre repentina de defensor das minorias. João Frederico não deu ouvidos. E a sessão continuou sem mais alteração.
04) Era domingo e o sol convidava o natalense para o litoral. Nada como o mar e a brisa para reparar a fadiga da rotina semanal do trabalho. E dentro desse enfoque, surge o publicitário e Secretário de Ação Social Tertuliano Pinheiro, que recebeu um convite amistoso do seu colega Nelson Freire para visita e almoço no aprazível Condomínio Porto Brasil, entre Pirangi e Cotovelo. Visão panorâmica do oceano, conforto, fidalguia do anfitrião e whisky generoso marcaram os instantes felizes dos convidados. Almoço farto e conversa amena sob agradável fundo musical, que não deixou fora o repertório das músicas do deputado e compositor Nelson Freire, em parceria poética com o bardo novacruzense Diógenes da Cunha Lima. O sol esmaecia. O cair da tarde exigia aos circunstantes a revitalização dos folguedos para afastar a sonolência clássica do whisky e a exaustão dos papos, que já se tornavam repetitivos. Música ao vivo! Alguém gritou. Nelson, cadê o seu violão? Eram os pedidos oportunos de outros convidados, admiradores da voz e do toque de Nelson ao violão. Um nativo daquelas plagas (empregado ou eleitor) lembra ao deputado que na comunidade existe um músico tecladista. Alvoroço. Providências. Chega finalmente o musicista e seu equipamento, armado no amplo alpendre da casa. Nova rodada de bebidas é servida com gostosos petiscos. Havia ansiedade no ar, enquanto o artista armava o seu instrumento. Tertuliano Pinheiro observava o seu perfil e fazia para si mesmo uma análise não muito lisonjeira. Conversas rápidas, risos, cigarros acesos, olhares furtivos, todo um clima que sempre antecede uma apresentação artística em qualquer teatro ou casa de show. Após quase dez minutos afinando a pianola, o cantor arremeteu uma nota grave e sonora, como se tivesse iminente o inicio da apresentação. Todos olharam e silenciaram. Para a surpresa geral, a revelação musical de Pirangi sacou um discurso pegajoso e confuso: “É com muita alegria né, que estou aqui né, na casa de Nelson Gonçalves”. Aí o alpendre veio abaixo. Tertuliano, ao lado, desmaiou de tanto rir. “Tá bom, tá bom, toca, toca”, surgiram difusos apelos da galera sofrida. Após, o deslize nominal com o anfitrião, o pior ainda estava por acontecer. Aos tropeços, tanto a voz quanto a execução do artista eram sofríveis. A noite começava e com ela os sussurros abafados e expulsórios: “Muito bem, muito bem!!”. Mas o cantor das arábias continuava na dele porque se convencera que estava abafando.
(*) Escritor.