A PRIMEIRA SANTA-CASA NO BRASIL
Por: GILENO GUANABARA, sócio do IHGRN
No Relatório
que fez o então provedor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, Cláudio
Luís da Costa, em junho de 1857, consta a informação de que o português Braz
Cubas fundou, no ano de 1548, uma Santa-Casa,
nas proximidades do povoado de São Vicente,
o primeiro hospital do Brasil e da América, ao qual foi dado o nome de Casa dos Santos. Na mesma época, a sua
mantenedora, a Confraria da Misericórdia,
fora criada e também por sua iniciativa. A par e no entorno do hospital, com a contribuição
dos primeiros habitantes, Braz Cubas edificou também uma igreja, a de Nossa Senhora da Misericórdia. Dada a similaridade
com a Casa dos Santos (ou Hospital de Todos os Santos, como
também era chamada) e a sua mantenedora,
Confraria da Misericórdia, fundadas em Lisboa no ano de 1498, e para
que servisse de referência o até então conhecido Porto dos Escravos, passou a constar o nome – Porto dos Santos - nas correspondências trocadas com a corte. Em
face da sua importância comercial/marítima, ficou o nome da atual cidade de
Santos, na baixada paulista.
No relato
histórico de João Luís Promesse – in Reminiscências
de Santos, D. João III, Rei de Portugal, em Almeirim, no ano de 1551,
concedera à Casa dos Santos igual
tratamento dado por seu pai, D. Manuel, as casas de misericórdia instituídas em
Portugal. A mesma informação também se encontra nos escritos do beneditino e
paulista Gaspar da Madre de Deus (Memórias
para a História da Capitania de São Vicente-1797).
O português
Braz Cubas havia chegado em São Vicente no ano de 1532, na comitiva de Martim
Afonso de Souza, donatário-mor da Capitania, de quem recebeu em doação uma gleba
de terra, onde atualmente se acha encravado o perímetro urbano do litoral, escoadouro
de índios escravizados para as minas do Peru, atual cidade de Santos.
Conhecedor da experiência da Casa dos
Santos, fundada em Lisboa, bem
como passando a conviver com a situação precária dos patrícios aqui residentes,
vítimas das doenças que atingiam os primeiros povoadores, se propôs fundar nos
limites de sua propriedade uma casa de socorro público, nos moldes da
experiência da metrópole.
Edificada a sede
e organizada a lista dos confrades, enviaram carta ao rei de Portugal, com
pedido de facilidades para a instituição que fundaram. A publicação conservada
no Arquivo Nacional (Documentos
Históricos), na referência à Ordem
Terceira de S. Francisco da Penitência de Santos, traz a informação de que o rei, D. João III, em setembro de 1548,
solicitara esclarecimentos sobre o pedido de regalias e licença que os
subscritores teriam requerido e obtido para a fundação daquela Casa, portadores que foram os integrantes
do Conselho Ultramarino, Rafael Pires Pardinho e Antônio Henriques.
Ainda hoje é
mantida no arquivo da Santa-Casa de Santos o termo de Compromisso, tal como foi
originariamente lavrado: - Compromissos e
privilégios pelos quais a Irmandade ordena sejão cumpridas todas as obras de
Misericórdia e espirituais, no quanto fôr possível, para socorrer as
tribulações e miseria que padecem nossos irmãos em Christo, que recebem gozo do
Santo Baptismo, a qual Confraria foi instituída no anno do Nascimento do Nosso
Senhor Jesus Crhristo de mil quinhentos e quarenta e oito, no mês de agosto, na
Sé Cathedral desta mui sempre leal cidade de Lisboa, por permisso e
consentimento da Illustrissima Senhora Rainha D. Leonor, a segunda que Santa é,
a qual, aos tempo da instituição da dita confraria e irmandade, governava os
Reinos e Sonhorios de Portugal, pelo muito alto, Excelentissimo e muito
poderoso Senhor Rei D. Manoel Nosso Senhor...
Segue-se anexo à cópia do Compromisso
o da Confraria da Misericórdia, com seus 21 capítulos que serviram de estatuto,
tal como observado aqui, na colônia vicentina. Dispunha: Das obras de Misericórdia; como serão ordenadas e compostas para o
serviço; como hão de ter ao entrar de confrades e em repreenderem os que não
forem de forte condição; da eleição dos oficiais; do provedor e dos mordomos de
cada mês e os da capela; dos pedidores de pão; das propriedades da Confraria;
dos condenados à morte; a repartição dos cargos; de como visitar os presos e os
envergonhados; da arrecadação das esmolas; Da confirmação e aprovação do
compromisso por El-Rei; e os privilégios que sejam concedidos por El-Rei Nosso
Senhor.
O modelo da
instituição Santa-Casa adotado em São
Vicente copiou o modelo de Portugal.
A piedosa rainha, casada com D. João II, instituíra no ano de 1498, a Casa dos Santos, a primeira Santa-Casa
de Portugal. Coube ao seu confessor e esmoler, Frei Miguel Contreiras, influir
para que se adotasse ali o espírito das confrarias de misericórdia fundadas em
Florença, no ano de 1350, as quais se destinavam a dar guarida aos
desamparados, abrigo e educação aos órfãos, dotes as donzelas desprevenidas,
remédio aos enfermos, esmolas aos necessitados, pousada aos retirantes e
sepultura aos mortos. Já em Portugal, as confrarias serviam também para dar
apoio e manutenção financeira àqueles hospitais beneficentes.
A rainha
Leonor, irmã de D. Manuel I e viúva de D. João II, dera apoio material àquele primeiro
hospital público instalado no claustro da Sé de Lisboa. Pela ordem, o rei e a
rainha eram o primeiro e o segundo confrades, a que se seguiam os membros da
nobreza que obrigatoriamente aderiam ao gesto de caridade e, por isso, eram chamados
irmãos de misericórdia, motivo de
orgulho de seus portadores. A fim de angariar fundos, para os fins filantrópicos
a que se propunham, organizavam-se festas e se realizavam comemorações
religiosas. Numa delas, no Natal de 1518, ficou famosa a fala de Gil Vicente. Nas
presenças do rei, da rainha e das Damas da Corte, o escritor, doublé de
comediante e ourives, declamou pela boca de um dos seus personagens, vivente no
purgatório: “ – Vêdes outro perrexil/ e
marinheiro sedes vós;/ ora assim me salve Deus,/ e me livre do Brasil.”
(Auto da Devoção – Obras Completas, 1572). O dramaturgo satirizava as
contradições, contabilizava o medo que causava o Brasil e as personagens
pitorescas da sociedade da época. Era tempo da acumulação comercial que se expandia
nos mares à distância; da linguagem satírica dos autos pastoris/medievais; do
renascimento europeu e da prática salvadora da filantropia misericordiosa.