Um estágio
Estes dias, pela Internet, andei comprando umas belezuras na Livraria Cultura. Tudo com 90% de desconto (e quem me conhece sabe que adoro descontos). Entre elas estava um tal “Confronting Animal Abuse: Law, Criminology, and Human-Animal Relationships” (Rowman & Littlefield Publishers, 2009), de Piers Beirne. E desse dito cujo eu tirei a ideia desta crônica.
Em “Confronting Animal Abuse” há um capítulo intitulado: “Is there a Progression from Animal Abuse to Interhuman Violence?” (“Existe uma progressão dos maus-tratos a animais para a violência para com humanos?”). O tema não me era desconhecido, claro. Já tinha lido sobre essa progressão em livros e produções acadêmicas e, nos últimos meses, em artigos de jornal. Mas achei a abordagem de Beirne, histórica e imparcial, deveras interessante.
De início, lembra o autor de “Confronting Animal Abuse” que a relação entre abuso animal e violência para com os humanos é uma “proposição com um antigo e impressionante pedigree. Afirmações acaloradas sobre sua veracidade podem ser encontradas em pensadores tão diversos como Pitágoras, São Tomás de Aquino, Montaigne, Kant, Mary Wollstonecraft, Gandhi e Margareth Mead. Exposta pelos seus defensores num alto nível de abstração, ela é hoje frequentemente disseminada no bordão, quase mantra, denominado ‘o link’. É principalmente defendida e estudada por feministas e por membros de agências governamentais e organizações filantrópicas que trabalham com famílias em situação de risco. Ela também implicitamente aparece em escritos de filosofia moral sobre bem-estar animal e direitos dos animais”.
Com base no que já li sobre o tema, incluindo agora “Confronting Animal Abuse”, acho que posso dividir essa temática em quatro eixos ou relações: (i) maus-tratos de animais e violência familiar; (ii) maus-tratos de animais na infância e o futuro da criança; (iii) vida pregressa de adultos violentos e maus-tratos de animais; e (iv) a progressão da crueldade individual para o abuso institucionalizado de animais. São essas as minhas sacadas de hoje.
Embora ainda careçamos de informações oficiais no Brasil, pelos dados já existentes e analisados (aqui e, em especial, nos EUA), acredita-se existir uma clara relação entre a violência familiar e os maus-tratos de animais de companhia. Nos EUA, entre veterinários, instituições de controle e abrigo de animais, defensores dos direitos das mulheres e a própria polícia, pela experiência diária e pelos números, há um consenso sobre como o abuso de animais e a violência familiar andam juntos. Tudo misturado, familiares violentos tendem a ser agressivos também com os animais de casa. E até primeiramente com estes, para, só em momento posterior, o serem com os outros membros humanos da família. Os números assustam.
Uma outra relação é entre os maus-tratos de animais na infância e o futuro da criança. Segundo o autor de “Confronting Animal Abuse”, crianças que apreendem a ter compaixão pelos animais têm maior probabilidade de se tornarem adultos sensíveis e gentis. Doutra banda, crianças que são abusivas para com os animais – a maioria, por sinal, meninos e com notável comportamento antissocial – tendem ou tenderão a ser abusivos e violentos quando adultos, contra animais e humanos. Mais uma vez, os dados coletados mostram isso. Podem pesquisar.
Aliás, é aqui que chegamos ao terceiro link, que deve ser entendido de forma regressiva. Quando se investiga a vida de adultos violentos, frequentemente se descobre um indivíduo, já na infância ou adolescência, violento para com os animais. Há até relatos – e já não sei dizer se é mito – de serial killers que, no passado, estiveram metidos em maus-tratos de animais. Pode haver uma certa mitificação desses indivíduos. Mas não deixa de ser um dado a considerar.
E há a progressão da crueldade individual para o abuso institucionalizado de animais. Os circos romanos, os nossos velhos circos, as caçadas, as rinhas de galos e de cães, a tourada, a vaquejada etc., todas essas coisas são adoradas por indivíduos insensíveis ao sofrimentos animal. Homens violentos, muitos deles. Do indivíduo, da soma ou agrupamento destes, chega-se a esse tipo de abuso naturalizado e institucionalizado. Acredito que nossa sociedade está em progresso contra isso, ainda lento, mas constante. Um dia, com a ajuda do direito, chegaremos lá.
Bom, eu poderia fechar este riscado apenas lembrando que estou na companhia dos grandes pensadores citados acima. Entretanto, serei mais pedagógico e dramático. Recomendo uma espiada na gravura “First Stage of Cruelty” (1751), do grande William Hogarth (1697-1764). Afinal, uma imagem vale mais do que mil palavras (minhas).
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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