O jurista nacional
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Charles Dumoulin (1500-1566) é considerado um dos fundadores do que
podemos chamar de “direito nacional”. Sob o ponto de vista do direito
francês, ele certamente o foi.
Du Moulin (em outra versão da
grafia do seu nome) ou Molinaeus (seu nome latino) nasceu em Paris no
seio de uma família nobre. Mas não teve uma vida fácil. Advogado no
Parlamento de Paris, empolgado com a reforma protestante, abraçou o
Calvinismo. Pegou briga com a Sorbonne. Os seus “Commentaire sur l'édit
du roi Henri II sur les petites” (1552) e o seu “Conseil sur le faict du
Concile de Trente” (1564), em momentos diversos, causaram muito
alvoroço. Teve de fugir para a Alemanha. Foi professor em Estrasburgo e
Tübingen. De volta à França, chegou a ser preso. Perdeu dois filhos no
célebre massacre da noite de São Bartolomeu (na virada de 23 para 24 de
agosto de 1572). E foi até a favor da criação de uma Igreja francesa,
movimento conhecido como Galicanismo. No fim da vida, de mal com
católicos e calvinistas, tornou-se luterano.
Entretanto, foi
como jurista Dumoulin ganhou seu lugar na história. Sua obra magna foram
os seus “Comentários [e revisão] sobre os costumes de Paris”,
originalmente publicados em 1539, mas reeditados várias vezes, em vida e
post mortem, até pelo menos 1681, quando se tem, quando da publicação
de suas obras completas, a versão considerada “definitiva” dessa sua
obra-prima. Foi chamando, ainda pelos seus contemporâneos, de o
“príncipe dos jurisconsultos”. E sua obra teve um impacto enorme no
desenvolvimento do que veio a ser o direito francês.
Aluno da
Escola Culta (sobre a qual já escrevi aqui), mas considerado o fundador
da Escola Costumeira, Charles Dumoulin foi um jurista de transição.
Primeiramente, como registra o “Dictionnaire historique des juristes
français (XIIe-XXe siècle)” (publicado pela PUF – Presses Universitaires
de France, sob a direção de Patrick Arabeyre, Jean-Louis Halpérin e
Jacques Krynen, em 2007), “seu estilo, a construção de suas obras, seu
tratamento analítico e casuísticos dos textos, seu modo de raciocínio
que confronta cada questão com argumentos pros e contra, são aqueles de
um bartolista fiel aos métodos herdados dos séculos precedentes, mas sua
cultura universal, sua abertura de espírito, sua audácia intelectual
são dignas de um humanista”.
Em segundo lugar, lembremos o
status que tinha direito romano, como “direito comum” à época, para os
Estados da Europa. “Jurista nacional (senão nacionalista)”, Dumoulin,
como registra Jean-Marie Carbasse (em “Que sais-je? Les 100 dates du
droit”, editora PUF, 2015), rejeita essa “tese dominante que fazia do
direito romano o ‘direito comum do Reino’ e o substitui pelo direito
costumeiro, ‘verdadeiro direito’ da França”. Para Dumoulin, sobretudo
nas suas lições da maturidade, como explica Antonio Padoa Schioppa (em
“História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”,
edição da WMF Martins Fontes, 2014), “era preciso considerar que o
direito comum francês era constituído não pelo direito romano e sim pelo
direito consuetudinário das grandes regiões da França”. Assim, o
direito romano – ainda importantíssimo, frise-se –, passava a ter o
status de regulamentação residual, ao qual se recorria quando
necessário, até pela sua qualidade e por ser ele conforme ao direito
natural, à razão e à justiça.
Mas Dumoulin foi sobretudo um
“inimigo da fragmentação feudal e da diversidade dos costumes”, como
lembra Paulo Jorge de Lima (em “Dicionário de filosofia do direito”,
Sugestões Literárias S.A., 1968), lutando por uma unificação do direito
comum de então. O seu livro “De Feudis” (1539) é prova disso. Entre os
vários “costumes”, o de Paris, redigido pela primeira vez em 1510, foi
aos poucos ganhando uma prioridade clara como o texto jurídico mais
importante do Reino francês (e fica óbvio, aqui, que existiam outros
costumes em outras cidades e regiões da França). Dumoulin, explica o já
citado Antonio Padoa Schioppa, “apontou algumas de suas lacunas e
incongruências e propôs para ele uma redação revista, posteriormente
realizada em 1580, com a incorporação de numerosas regras decorrentes
das decisões do Parlamento parisiense. A partir de então, essa redação
tornou-se o texto de referência mais acreditado, ao qual a
jurisprudência recorria para o preenchimento de lacunas ou para a
resolução de ambiguidades dos outros costumes”. Dumoulin foi, sem
dúvida, o principal estudioso e comentador do tal Costume de Paris.
Angariou vários seguidores, tendo a sua escola contribuído de maneira
decisiva para a formatação do direito nacional francês.
Nessa
toada, especificamente, Charles Dumoulin tratou de muitos temas queridos
ao direito privado: propriedade, contratos, obrigações, representação,
sucessões, responsabilidade civil e por aí vai. Interpretando livremente
o direito romano com base nos costumes nacionais, as teses de Dumoulin,
reinterpretadas e replicadas pelo grande Pothier (1699-1772, sobre quem
logo falaremos aqui), chegaram do Código de Napoleão (de 1804), fazendo
dele (Dumoulin), com inteira justiça, um dos fundadores do direito da
França.
E essa “invenção” do direito nacional, sendo o Código
talvez o seu mais importante produto, acabou sendo imitada mundo afora.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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