01/07/2019

Grandes e pequenos crimes
As estatísticas da criminalidade estão aí. Entre nós, de fato, a coisa não vai bem. Por exemplo, no “Atlas da Violência”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, eu constatei que, no Brasil, só em 2017, foram 65.602 homicídios. E a solução para minorar esse gravíssimo problema, podem ter certeza, não é armar a minha tia Neusa ou o padeiro da esquina com uma pistola automática.
Mas isso – a questão de armar ou não a população contra a criminalidade – é outra história.
Fiz essa pequena introdução para tratar de outra questão: a curiosidade do público pelos tipos e atos criminosos, que no Brasil existem em abundância, e como isso acaba virando literatura.
Na verdade, como registra Enrico Ferri (1856-1929), em seu “Os criminosos na arte e na literatura” (Ricardo Lenz Editor, 2001), “na vida, com efeito, o subsolo da criminalidade é constituído pelo inumerável pulular daquilo que se poderia chamar os micróbios do mundo do crime. Ao contrário dos micróbios do mundo biológico, aqueles passariam desconhecidos e anônimos, e suas aparições, desaparições e reaparições rápidas, sob a lente opaca das audiências do tribunal de polícia ou entre os muros mais ou menos úmidos dos calabouços, não deixariam qualquer traço, se a estatística os esquecesse”.
Entretanto, vez por outra, anota o mesmo Ferri, entre esse amontoado de pequenos delitos cotidianos “sobressaem as fisionomias monstruosas ou loucas e, por vezes, geniais que, tornadas populares e minunciosamente descritas pela imprensa cotidiana e pela crônica judiciária, são definitivamente fixadas pela fantasia de um artista num drama, num romance ou num melodrama”.
Esse tipos e atos criminosos, tidos por “geniais”, ganham primeiro as páginas dos jornais, outrora impressos, hoje televisados ou digitais. Houve um tempo – e eu sou desse tempo – em que as páginas policiais dos nossos impressos, entre os quais esta Tribuna do Norte, eram as mais “desejadas” pelo público ávido de sensação. Era a crônica da cidade, das delegacias e dos tribunais, que ganhava, com a sucessão de dias, quase a forma de folhetim.
Houve até quem fizesse disso – da crônica jornalística policial – grande literatura. Truman Capote (1924-1984), com o seu “A Sangue Frio” (“In Cold Blood”, 1966), que descreve o assassinato de uma família no interior do estado do Kansas, nos Estados Unidos da América, é um exemplo disso. E sobre esse Capote, qualquer dia, conversaremos aqui.
De toda sorte, afastando-se da crônica jornalística policial – que supõe-se estar em consonância com a “verdade” dos fatos –, esses tipos e atos criminosos, que fogem do vulgar, de tão “bons”, acabam ganhando, para a posteridade, os traços e as cores da ficção. Esses crimes, desde sempre atrozes, mas agora sentimentalmente aperfeiçoados, acabam destinados à imortalidade na grande arte de um grande autor. Outrora nos tão adorados folhetins (vide o caso de Émile Gaboriau, sobre quem escrevi no domingo passado). Depois em romances de fôlego ou peças de teatro.
Na ficção policial – e, até mais especificamente, na ficção forense –, de fato, muito comumente, a arte imita a vida. Eu já até tratei disso aqui, falando da queridíssima Agatha Christie (1890-1976), que, para escrever algumas das suas mais badaladas obras – vide os casos do romance “Murder on the Orient Express” (de 1934) e da peça “The Mousetrap” (premiere em 1952) –, teve por inspiração, ao menos como pano de fundo dos seus enredos, crimes de fato ocorridos.
De toda sorte, para encerrar o dia de hoje, tiro ainda duas conclusões. Mesmo no crime, se você quer ser famoso, é preciso ser grande. Crimes e privações as mais diversas restam ignoradas do grande público, ante a desatenção geral para as coisas miúdas, no velocíssimo ritmo da vida cotidiana. A história dos pequenos crimes e dos pequenos criminosos, até nisso relegados na vida, cai invariavelmente no esquecimento. Já os grandes crimes e os grandes dramas judiciários são “todo-poderosos sobre a imaginação e sobre os sentimentos do povo”, como descreve poeticamente o grande Enrico Ferri. Eles excitam a curiosidade pública, revivendo na massa (leitores ou não), mesmo que inconscientemente, lembranças hereditárias de instintos criminais, violências individuais ou coletivas das quais o ser humano é capaz, que hoje apenas disfarçamos com um ligeiro verniz esfumaçado de civilização.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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